sábado, 17 de novembro de 2007

Convergência de Modelos de Negócio

A tecnologia converge mais rápido do que as culturas e as políticas. Aliás, vai na frente e as determina.

TI, Telecom e Mídia se desenvolveram com características distintas e agora se fundem pela convergência propiciada pela tecnologia digital. Diante da nova realidade tecnológica, três culturas se conciliam, buscam complementaridades e contornam conflitos. A convergência da convergência, por mais que os ideólogos resistam, acaba sendo a Internet. Os distintos modelos de negócios usuais nas indústrias de TI, Telecom e mídia também convergem na Internet.

Os três mundos e suas convergências podem ser divididos em três níveis horizontais e três setores complementares, identificados nas colunas da tabela abaixo.

Níveis \ Setores Tecnologia Produto Atividade
Terciário Uso Rede Serviço
Secundário Produção Equipamento Indústria
Primário Desenvolvimento Componente Pesquisa

A convergência evoluiu do nível primário para o terciário, mas agora é puxada pelo nível superior. O setor de atividade mais dinâmico da economia é o de serviços, que puxa e comanda o desenvolvimento dos níveis inferiores. A rede convergente, por excelência, é a Internet, e seus novos usos engendram o surgimento de novos serviços.

O mundo Telecom surgiu e viveu à sombra do estado, pois a propriedade do principal insumo, o meio de comunicação, é pública. A exploração econômica do serviço, ou é feita diretamente pelo estado em regime de monopólio (modelo europeu), ou é concedida a determinados grupos numa competição regulada (modelo americano predominante). A importância do planejamento, da padronização e do lobby decorrem daí, bem como a possibilidade de corrupção e desvios éticos. A possibilidade de cartelização e de cooptação das agências reguladoras são tendências permanentemente combatidas e denunciadas. De qualquer forma, a competição no setor é intrinsecamente imperfeita, pois há barreiras de entrada naturais em relação ao porte das empresas.

A TI nasceu e se desenvolveu sob o paradigma da inovação, incorporando radicalmente a ideologia da livre competição liberal. Fermentada na academia inovadora, foi inseminada pelo empreendedorismo e alavancada pelo capital de risco. A pulverização do mercado de TI em miríades de nichos e empresas é bem distinta da estrutura do mercado tradicional de Telecom, demonstrando uma situação concorrencial mais salutar. Os valores do empreendedorismo, liberdade individual e de igualdade de oportunidades temperados pela globalização se constituem num verdadeiro inferno para governos, e entidades controladoras, criando enormes resistências a tentativas de regulação. Entretanto, a tendência à padronização de plataformas cria monopólios de fato que se aproveitam do enfraquecimento político dos governos. Incentiva-se então uma corrida de marketing mais do que tecnológica para a adoção de padrões de fato. A corrida é para ser “o” padrão de mercado que conta mais do que o lucro para a valorização da empresa. Nesta corrida, ser o primeiro importa mais do que ser o melhor. A inovação como um valor em si acelerou a obsolescência ao ponto de comoditizar a tecnologia. O conhecimento e sua produção, de diferencial que era, passou a ser requisito mínimo.

O negócio de mídia é o mais antigo dos três (jornal), mas foi o último a ser tragado pelo redemoinho da convergência. Em comum com a Telecom, o negócio de mídia tem uma estreita relação com os governos, constituindo-se num verdadeiro quarto poder dos estados democráticos. Em comum com a TI, o negócio de mídia se nutre da competição e da inovação, se não da forma, pelo menos do conteúdo: a moda, a notícia, a novidade.

Traçado esse pano de fundo, vejamos os modelos de negócios típicos de cada setor.

Os clientes de telecom são usuários que pagam uma mensalidade. A mensalidade se constitui de uma assinatura que dá direito a uma franquia de serviços/recursos e de um adicional variável caso o uso dos serviços/recursos ultrapasse a franquia. Tem-se então uma série de valores de taxas unitárias de uso de recursos que são multiplicadas pelo uso efetivo para chegar ao valor do serviço adicional. Essas taxas têm, tradicionalmente, tetos máximos fixados pela autoridade reguladora do poder concedente. Também é necessário que os fornecedores disponham de um sistema de medição de uso transparente e passível de fiscalização. A idéia é de que o serviço seja prestado ao grande público para garantir o retorno do investimento inicial elevado. A escala é garantida pela regulação da concorrência e, em paralelo, pelo tabelamento dos preços, paradigma que tem sido colocado em cheque pelo barateamento das novas alternativas tecnológicas e pela quase total amortização da malha de distribuição mais cara e mais antiga. A idéia de ter usuários cativos “ad aeternum”, verdadeiros reféns de fornecedores monopolistas, pode talvez revoltar alguns, mas certamente desperta a cobiça de todos. Diz o adágio: todo monopólio é odioso, menos o meu.

Antes da Internet, a TI tinha dois modelos de negócio. Um é o modelo de serviços tradicionais de cobrar por hora/homem medida ou empreitada, usada desenvolvimento de software por encomenda, sendo comum, após o desenvolvimento, um Contrato de Suporte e Manutenção, com direito a uma franquia de horas/homem para garantir a atualização do software. O segundo modelo de negócios é o da licença de uso. Neste caso, o software é considerado uma propriedade intelectual, uma obra cujo uso é licenciado. Normalmente, a licença é renovada periodicamente e dá direito a novas versões. Nestes dois modelos tradicionais o software é disponibilizado num meio físico (disco) e é instalado no computador do cliente. A Internet trouxe uma nova forma de transporte (o download) que dispensa o meio físico.

Mas a Internet possibilitou ainda um novo modelo de negócios para a venda de software que significa uma verdadeira mudança paradigmática. Na Internet, vários fornecedores passaram a disponibilizar seus softwares segundo o modelo ASP (Application Service Provider). Neste caso, o software reside fisicamente num servidor do fornecedor e é acessado pelo usuário através do seu browser de Internet padrão, o mesmo que ele usa para navegar na web. Note-se que não há mais necessidade de uma mercadoria a ser transportada (nem mesmo eletronicamente) ou transacionada. A mercadoria torna-se serviço, o cliente torna-se usuário, o fornecedor torna-se provedor. O modelo da telecom de franquias e adicionais abre-se ao fornecedor de software que agora pode baratear seus preços, tendo à sua disposição uma comunidade de usuários virtualmente ilimitada. “Só” é preciso ficar conhecido – de novo o marketing.

Na indústria de mídia, afora os veículos de propriedade do estado, que têm uma subvenção, o modelo de negócios tradicional é o do jornal. O custeio da produção e distribuição da informação é coberto por duas fontes de renda: assinatura (dos clientes) e publicidade (dos anunciantes). A produção de conteúdo também se divide em conteúdo informativo e conteúdo de caráter comercial ou promocional, ambas de interesse público. Ora, na medida em que o conteúdo se torna mais comercial e os veículos mais segmentados, a tendência é de que a assinatura se torne menos significativa e a verba publicitária maior. O que é “vendido” então para o anunciante é o próprio usuário. A verba publicitária é tão maior quanto maior a circulação ou a audiência do veículo.

Ora, a Internet é também uma nova mídia, e qualquer site, não só dos provedores de conteúdo tradicional mas também dos provedores de serviços e ASPs, tem a “audiência” dos seus usuários. Novos serviços informáticos “gratuitos” de grande utilidade atraem milhões de usuários que são “vendidos” a grandes e pequenos anunciantes de banners. Uma quantidade enorme de pequenos anunciantes (a “long tail”) agora tem mais uma forma de publicidade nos Links e Contextos Patrocinados, inovação no modelo de negócios de mídia trazida pela Internet. Basicamente, os anunciantes “compram” palavras ou dão um lance por clique. Um site qualquer pode permitir que o seu conteúdo seja varrido por uma ferramenta que assinala as palavras compradas, as quais se tornam links que, uma vez clicados, abrem um pop-up do anunciante ou encaminham para o seu site. Alternativamente, um site de busca ou conteúdo pode apresentar janelas de publicidade em que a ordem de aparecimento depende de um ranking estabelecido pelo número de cliques recebido multiplicado pelo valor do clique daquele anunciante.
A Internet, portanto é o mercado convergente por excelência. O processo de convergência é fluído, as cartas não estão dadas e o jogo não está jogado. A vantagem do ganhador de hoje não lhe assegura a vitória amanhã. Múltiplas tecnologias, múltiplos modelos de negócio, múltiplas culturas e múltiplos valores. Dentro dessa multiplicidade, a clareza de alternativas se anuvia. Espero ter contribuído para esclarecer o panorama, mas tudo pode mudar amanhã. O bom é que a escolha cabe a cada um, e os riscos também.

Muito é Demais ou Dois Segredos

O que é demais é muito e o que é pouco falta. Haverá algo que escape a essa lei?

Talvez a dor, a maldade e a desgraça pudessem sumir sem deixar saudade. Será? “Desgraça pouca é bobagem”, obviamente, é uma blague para reforçar o ânimo. Mas a vida no Éden seria mesmo tão boa? Adão e Eva eram felizes ou idiotas? A felicidade do desfrute do bem abundante ensina alguma coisa? Ou a tragédia humana é exatamente a sua grandeza: constatar que o mal e a dor são inevitáveis, e persistir. Mas não é exatamente porque o bem e o prazer são raros, que escolher um e desfrutar o outro é sublime? A eterna (porque seu fim é impossível) busca do melhor em nós – não é a essência do crescimento e da sabedoria? Por que o fim é impossível? Porque há que reconhecer que o acaso não nos prefere a nada, que Deus, se existe, é indiferente. Porque há que reconhecer que a fonte de toda maldade é esse amor próprio, essa preferência pelo próximo em detrimento do distante, essa luta pela sobrevivência da vida que é a nossa própria essência, e que nos leva a persistir nela. Há que reconhecer que o mal está em nós. Há que reconhecer, enfim, que toda essa luta é vã, porque o fim certo é a morte. Se o fim é impossível, a busca é um fim em si. Reconhecer isso talvez possa nos reconciliar com a dor, a maldade e a desgraça, e aceitá-las como adversárias necessárias. Se a luta é um fim em si, há que agradecer ao inimigo que a possibilita. Busca eterna, luta eterna, eterna tragédia de Sísifo e Atlas. Trata-se de trilhar o caminho mais do que chegar ao destino. De mirar bem, mais do que acertar o alvo. De buscar o equilíbrio e o balanço mais do que a perfeição. Porque perfeição é demais.

E a confiança? Não seria um caso em que o excesso nunca é demais? Confiança: além da esperança e aquém da certeza. Uma potência entre duas impotências. A esperança não age porque espera – é um confiar no além. A certeza não leva à ação, apenas ao movimento e à contemplação. O que resulta da certeza é efeito, não causa – reação de um objeto e não ação de um sujeito. A confiança é que nos leva a agir apesar do risco (aliás, só há confiança se há risco, senão já seria certeza) e a mudar o curso natural das causas e dos efeitos, alterando as probabilidades a nosso favor. Como confiar na sorte, sabendo que a dor é certa? Como confiar no outro sabendo que o mal existe? Entramos no avião confiantes. Ligamos o computador confiantes. Confiança ou esperança? Quantos milhões de promessas precisam ser cumpridas e quantos acidentes precisam não acontecer para que o avião e a Internet funcionem? O tal de Segredo parece ser esse: o que nos acontece depende de nossa atitude interior, que podemos aprender a controlar conscientemente. Basta confiar em si, no cosmos e nos outros que tudo conspira a favor. Ora, isso é a ingenuidade estóica do Logos, que o pensamento moderno desmascarou. A sabedoria dos antigos, embora sábia, era ingênua. Por trás desse pcicologismo entusiamante está uma confiança no poder da consciência que beira a esperança. Confiança em excesso é esperança, é fé, é um pensamento mágico, uma crença acima de toda evidência: loucura, em suma.

Não há salvação. Não há felicidade plena. Esse é o outro segredo. O mais bem guardado, pois ninguém ousa confessar. Até porque não queremos que nossos filhos saibam, pois, apesar de toda evidência, desejamos para eles a felicidade completa. Não há porque desistir de tentar, mesmo sabendo disso. Confiança é exatamente o que nos livra do niilismo cético e da inação diante da dor de saber. Melhor esquecer? Não há porque esconder isso da consciência para confiar. Aliás, a certeza da salvação não é confiança, é fé – a crença contra a evidência. É a desconfiança (a confiança pelo avesso) que nos salva dessa loucura. Então confiança nunca pode ser demais, senão vira esperança. E nunca pode ser de menos, senão vira certeza contemplativa. Não há salvação senão buscar o equilíbrio, sempre instável, sempre tênue, sempre difícil, porque impossível.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Imanência

Eis um conceito difícil de entender. Então, vou começar complicando. Luc Ferry defende a transcendência na imanência. Paradoxo, pois, num sentido, imanência é o oposto da transcendência. Transcendente é o que vai além, sai de si, busca fora o princípio e a essência. Imanente é o que fica em si e tem em si o princípio e a essência. Esta a minha explicação. Mas vamos ao dicionário: imanente é o que está compreendido na essência do todo. Por essa definição, imanência seria a idéia de fazer parte do todo, mas compreender em si o todo. Outro paradoxo. A parte está no todo e contém o todo em si - o conteúdo abarca o continente, embora a distinção fora/dentro não faça sentido desde uma perspectiva imanente.

De qualquer forma, a doutrina teológica do imanentismo nega a existência de influências transcendentais sobre o mundo (não sobre o homem).

A enciclopédia ensina que imanente é um termo usado em contradistinção a transcendente (in-manere: permanecer em si, ficar ou lidar dentro de si). Imanente refere-se ao fato ou condição de estar completamente compreendido dentro de algo. O uso mais importante do termo é teológico, na doutrina estóica de Deus como sendo a Natureza, existindo no e através do mundo criado, onde criador e criatura se confundem. Neste sentido, o imanentismo se opõe ao teísmo, que concebe Deus como um criador separado e acima do universo.

A filosofia transcendental petende basear-se apenas na razão pura, desprezando a observação e a análise de fatos objetivos dados pelos sentidos. O idealismo platônico é um transcendentalismo, afirmando a realidade última das idéias puras e considerando o mundo material apenas como aparência ou simulacro, uma instãncia inferior e derivada das essências que estão no mundo das idéias.

Ora, o acesso às idéias puras só pode se dar através de um olhar para dentro, que silencie os sentidos e busque apenas a intuição. Subjetivismo radical. Voltamos então à expressão de Ferry: a transcedência original (o idealismo platônico) só é possível através de um mergulho radical no eu. Em mim o mundo e, mais além do mundo o todo, a esfera das idéias fixas.

sábado, 8 de setembro de 2007

Olhar e Ver

A criança olha, o adulto vê. Ver é reconhecer, olhar é captar. Há algo mais atento do que o olhar de uma criança de colo? Atenção pura, percepção pura, puro presente, presença total. "Ao lado disso, o restante da nossa vida nos parecerá coisa de segunda mão ou emprestada, como algo um tanto sem viço, usado, desgastado", diz André comte-Sponville. Felizes dos que mantêm essa capacidade infantil do olhar atento que se surpreende com o mundo. Pobres dos que aprendem a ver, a selecionar o que faz sentido, o que se enquadra no conhecido, e a descartar o resto.

Para a criança, basta inclinar a cabeça e tudo muda. Porque muda o todo. Encantamento, mágica, fruição da percepção: o novo, o diferente, acolhidos com um sorriso. A criança olha o todo. O detalhe que muda, efetua a mudança do todo. O adulto analisa: uma parte mudou, o resto não. Sabedoria? Ou ignorância dos efeitos holísticos? Olho e não vejo. Está lá mas não reconheço. Porque minha atenção se volta toda para aquilo que, no olhar, reconheço. O brilho do que vejo ofusca o resto e me cega. Aprender a ver, desaprender a olhar.

Amadurecer. Afirmar. Não ver, por rejeitar. Olhar que não quer ver. Olhar estúpido. Estúpido porque não é amoroso, gentil, acolhedor. Porque é seletivo, porque rejeita. Olhar militante. Olhar que nega, nega reconhecimento, nega acolhida. Olhar duro, olhar arguto, olhar de rapina: fixo no objetivo. Rejeita tudo o mais.

Envelhecer. Olhar sem ver. Olhar estúpido. Não é que nada reconheça, mas sim que nada o surpreende. Tédio que supõe conhecer tudo ou que não quer conhecer mais nada. Cansaço da surpresa. Enfado de quem não quer mais nada de novo. Enfaro, rejeição do aprendizado, vontade de ignorar tudo. Desejo do nada. Vontade de morte.

Luto

Trabalho de luto. Trabalho requer esforço. Esforço para gerar um resultado. Um resultado que tenha valor.

Luto é trabalho. O luto requer esforço. Esforço da resignação à vida, esforço para não desistir, para resistir à morte, à tentação da morte. Esforço para voltar a escolher a alegria, para afirmar o direito à felicidade. Requer esforço, pois se sonda o abismo: a gravidade - força gravitacional, não sisudez - da morte, do nada. O luto é uma subida, uma volta ao plano e ao pleno, depois do escorregão no nada, no vazio. Vazio de sentido, vazio de sentimento, que muitos preferem à dor da perda.

Luto é trabalho. O luto tem um objetivo, visa um resultado. Qual? A volta. A capacidade de voltar a sorrir, mesmo sem inocência, apesar de conhecer a dor e o horror, apesar de saber. Esta é a força maior: resistir à força maior do destino. Nosso destino é a morte. Por isso é preciso escolher a vida.

Luto é trabalho. Trabalho da perda. Aprendizado da perda. Aprendizado da morte. Aprender a morrer é aprender a viver. Sem medo da própria morte, ensinava Epicuro, pois esse medo não tem sentido. Nossa morte não nos alcança: quando ela advém, já não somos nem sentimos. O sentido do medo, sua utilidade? Evitar a dor. Medo: dor subjetiva e preventiva para evitar a dor real. Não há sentido no medo de uma dor que não será sentida, que não pode ser dor presente. Medo sem sentido, da morte inevitável, inunda a expectativa. Consciência da morte, convicção do medo, pecado original.

Se eu não sofrerei na minha morte, porque sofrer por ela antes? Porque a morte nos alcança antes pela perda. Dos pais, da juventude, da saúde, da potência, da inocência, da vitalidade. Perdas naturais, esperadas, adiadas, inexoráveis. Ou perdas inauditas: a perda de um filho, a perda de um órgão.

E a perda do tempo! Esta morte (ou vida?) a conta-gotas, que os inconscientes não percebem ser um rio. Cada dia a mais, cada minuto a mais, é um dia a menos, um minuto a menos. Cada dia ganho de experiência é um dia a menos de vivência e um dia a menos de expectativa. Um ganho (a experiência) para duas perdas (do desfrute e do sonho). O valor do que se perde se transmite ao que se ganha, se se escolhe com consciência. Aceitar esse fato, compreendê-lo e acalentar-se com ele é o que se chama de sabedoria.

Luto bom, luto mau. De qualquer forma, por qualquer perda, o luto requer uma parada e recolhimento. Uma quebra na continuidade inconsciente da vida agitada, do movimento sem sentido. Tempo de reflexão: afinal qual o sentido? Tempo de acalanto - desespero consciente: desistir da esperança e da ilusão - luto bem feito. Não se trata de esquecer. Esquecimento sedativo. Sedar-se, matar-se um pouco, anular um pedaço de si. Ou tempo de catarse e esquecimento - desespero inconsciente: revolta contra a desilusão, volta a uma ilusão forçada, falsidade, loucura - luto mal feito.

No fim do luto bem feito, a volta. A volta ao caminho. Qual o sentido? O sentido não está no fim. Pois o fim, certamente, é a morte. O sentido da vida não está no destino, mas em percorrer o caminho. Da melhor forma possível. Se não há o bem, se não há um sentido dado, é preciso criá-los ou escolhê-los a cada passo.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Prazeres e dores do parto da consciência

Emoção, "e-motio": mover para fora. A raiz latina denota o fim. No fim da emoção, a ação. Na origem de toda ação, uma emoção. No fim, ou no princípio, agimos por emoção. Animais racionais? Não. Animais apenas, e, como tal, emocionais.

A raiz da palavra denota o seu fim, eu dizia, mas omite o seu início, afirmo. O primeiro movimento é interno. É um mover para dentro, ou por dentro. E ocorre no cérebro mais animal, no sistema límbico. Cérebro: caldeirão mágico da criação de mundos ou simples panela de pressão de hormônios? Idéias e ações, o que há de mais humano ou divino no homem, para um materialista não passa de agitação hormonal, aquecimento da sopa de hormônios a excitar células. A emoção prepara a ação. A ação humana e toda a ética, no final, resultam da adrenalina.

A emoção é o próprio "prazer em movimento" cirenaico. Sem emoção, não há solução. Porque, simplesmente, sem emoção não há problema a exigi-la. Sem emoção não há problema nem solução, não há dor nem prazer, não há falta nem plenitude. Desejo é falta, dizia Platão. Para suprir esta carência imensa criamos mundos, compusemos sinfonias e odes, desenvolvemos matemáticas e linguagens, fizemos guerras e construímos armas, destruímos a Terra e a reconstruímos.

Prazer sim, mas "em repouso", contestaria Epicuro. Prazer estável, ausência de dor: "ataraxia". Sem, inclusive, a dor do desejo: carência, ardência, esse prazer "em movimento" que produz no homem idéias (objetos de desejo) e o move no seu sentido. Ausência de dor: literalmente, indolência. Indolente, no dicionário: inativo. Epicuro que me perdoe, e com ele Buda e os estóicos, mas essa sabedoria de enterrar-se no presente e bastar-se é o que chamo de "sabedoria de abóbora": niilismo. Como se esforço significasse dor, ou melhor, como se dor fosse sinônimo de mal.

Ora, o prazer em movimento sempre se acompanha da dor. O prazer em repouso, que seria plenitude, é a plenitude do vazio, do nada: nada desejar ou esperar do futuro, nada lamentar ou recordar do passado e, nem mesmo, apegar-se ao presente fugidio. Desfrutar sem apego? Não! Desfrutar com moderação, "sofrosyne". Virtude do meio termo entre vício do excesso (sofreguidão) e o vício da falta (insensibilidade). Há que cuidar o equilíbrio. Que se perde quando buscado. Em materia de equilíbrio, se todo cuidado é pouco, muito cuidado é demais.

Desejo de desfrutar que surge como dor, sentimento de falta. Falta que engendra a ideação de um objeto que preencha esse vazio. Fruição (ou dor) antecipada e virtual da idéia: esperança ou medo, mas sempre fantasia. Desejo de prazer sempre acompanhado de seu fantasma: o medo da dor. Duplos necessários, basta evocar um para que surja o outro. Qual o nome desta dupla fantasmagoria? Eu vos digo ou vos desvelo: seu nome é emoção. Emoção criada pelo próprio sujeito, no processo de ideação. Criação do intelecto pelo intelecto, E, na origem, a emoção. Em movimento, sempre. Prazer e dor, dois nomes para a emoção. Necessariamente complementares. Eros cria Tanatos, Tanatos engendra Eros. Gêmeos univitelinos cujo parto dá luz a um filho com vários nomes: intelecto, consciência, alma, razão. Ao longo do processo a fusão dos opostos confunde, a escolha do sentimento se impõe, a complementariedade se perde e a emoção se elabora num significado. Gêmeos fratricidas. só a um é dada a luz da consciência. O outro fica lá, espectro fetal de uma idéia abocanhada pelo irmão. Inconsciente: casa assombrada dos gêmeos natimortos. Consciência: palco iluminado de idéias mutiladas, órfãs de suas irmãs cuja existência teimam em desconhecer.

Tudo então, afirmo, começa com a energia propiciada pelo estresse. (E há quem não goste dele!) A questão é: como dirigi-la, ou canalizá-la. Isso requer compreensão e método. Resposta natural com uma causa ou criação original de uma vontade? Causa de si mesma, autonomia, ou efeito inexorável do acaso ou da intenção alheia?

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Viajantes *

Há vários tipos de viajantes. Tem o “viajante perfeito” que viaja pelo mundo sem sair do lugar. Não que fique no mesmo lugar. Viaja mesmo, desloca-se. Mais que isso: descola-se. Onde quer que esteja, lá é o seu lugar. Vai, mas principalmente, está. E à vontade. Está enquanto fica e fica completamente enquanto está. E depois segue para outro lugar. Sempre seu, mas sempre diferente.

Já o ”viajante caracol” viaja sem sair de casa. Não que fique em casa. Esse também vai. Vai e fica. Mas não fica “no” lugar. Transmuda o lugar para a casa que leva consigo, feito tartaruga ou caracol. É como se, em qualquer lugar, estivesse sempre na sua casa, na mesma casa. E depois segue em busca de outro lugar. Sempre seu e sempre igual à sua casa.

Tem também o “viajante telúrico”, arraigado à terra, à casa. Este, se viaja, volta. E correndo. Viaja por obrigação ou por necessidade. Pois não consegue levar a casa como o caracol. Viajante desterrado, nenhum lugar é seu, nenhum igual à sua casa.
E tem aquele “ficante universal” que nunca sai de casa mas viaja o tempo todo. Mesmo sem possibilidade de viajar pelo mundo, viaja “na casinha”, na cabeça. Esse é o tipo que mais viaja na Internet. Está em todos os lugares ao mesmo tempo: onipresente virtual, turista instantâneo – sua casa é o mundo.

* Este texto foi publicado originalmente no Baguete (www.baguete.com.br) e faz parte do meu livro "O Entregador de Sonhos". Reproduzo-o aqui por solicitação da minha querida amiga, colega e consultora: Sylvia Lemos.

domingo, 29 de julho de 2007

Mágica

Atenção, surpresa, perplexidade, deslumbramento: quatro momentos da mágica.

Mágico é o inesperado, a ruptura com o previsível, a quebra da monotonia. A rotina está ali, na seqüência indiferente dos dias quando, de repente, um ato ou um fato, por vontade ou acaso, desperta a atenção. Não é mágica ainda. É necessária a surpresa.

Para surpreender, a mágica deve surgir de repente, pois, se é buscada, torna-se ilusão ou fuga. Parece um paradoxo, que uma atenção voluntária possa surpreender. É porque se trata da vontade mágica: aquela que surge sem esforço e sem comando.

Daí vem a perplexidade. No fundo da mágica há sempre um elemento paradoxal: estranheza, contradição, conflito, quebra, separação; no mínimo, dificuldade de entendimento.

Então vem o momento crucial. Após a perplexidade, se não há realidade, sobrevém o desapontamento, ou a desilusão, talvez o sofrimento. Retorno doloroso à realidade, ou fuga definitiva para a loucura, o pensamento mágico, criando um mundo irreal. Em busca da mágica, a mágica se desfaz e nunca chega ao deslumbramento, à iluminação. Fica na esperança, a loucura dos sãos; ou na loucura, a esperança dos loucos.

A verdadeira mágica vai além da ilusão: a perplexidade revela uma nova harmonia, cede lugar ao deslumbramento. Ocorre uma reconciliação com o real, mas num plano maior, numa nova compreensão. Iluminação, crescimento, transcendência, êxtase, entusiasmo – mágica.

Mas mesmo a verdadeira mágica tem seu fim. O estranho torna-se familiar, o novo torna-se conhecido. Na harmonia da síntese dialética a contradição some e o conflito se desfaz. Não há mais dificuldade no domínio da nova compreensão, assimilada em nova rotina.

Até um outro momento mágico.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Vegetais, animais e o que mais?

O que temos em comum com a abóbora? Somos seres vivos. A abóbora nasce, cresce, amadure, apodrece e morre. Nós também. A sabedoria da abóbora é nada desejar, nada esperar, nada lamentar. Desapego, budismo, niilismo. Afundada sempre no presente, eterno enquanto dura. Aboboremo-nos pois: vivamos no presente, aqui e agora, afundados na rotina da sucessão dos dias enquanto tivermos fôlego. Afinal, do ponto de vista da eternidade, nada importa mesmo.

O que temos em comum com o cachorro? Somos animais, apesar da falta do rabo. Além de viver, movemo-nos e sentimos. Fugimos da dor, buscamos o prazer, e no processo, expressamos e provocamos sentimentos. Embora nos falte o rabo para abanar ou abaixar, podemos latir, rosnar e ganir. Os sentimentos nos movem e dão sentido. Ora prá lá, ora prá cá, ao sabor das paixões, o que importa é agir. Ou reagir? Movemo-nos ou somos tangidos uns pelos outros?

No que somos diferentes? Falamos. Além de expressar sentimentos, produzimos palavras, conceitos que se agregam em discursos, que se comunicam, e que também fazem a nossa cabeça. Sentimentos geram idéias, que produzem sentimentos, que fazem pensar e sentir, e assim vai. Além da genética, somos produtos e veículos da memética, a propagação evolutiva e seletiva dos "memes" de Dawkins.

Gente abóbora, gente cachorra, gente gente. A gente sempre pode se aboborar ou acachorrar.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Ignorância e Incerteza

Ignorância e incerteza são sinônimos?
Desde sempre a inquirição sobre os limites do conhecimento, a epistemologia, é um tema predileto da filosofia. Parmênides e Platão negaram o valor cognitivo dos sentidos e afirmaram a verdade maior das idéias inatas. Os sofistas, ao contrário, defendiam o relativismo moral, afirmando que o conhecimento é sempre sensitivo e subjetivo. Afora o interregno cético e a dúvida dogmática de Pirro, que negava qualquer possibilidade de conhecimento da verdade, e recomendava a suspensão do juízo como máxima sabedoria, a dúvida foi sempre evitada. A mente, sede do espírito ou da alma, cujo conteúdo é o mundo subjetivo, foi resguardada pela aura de mistério no campo do divino inescrutável à razão, mas aberto à fé pela via da graça, enquanto o mundo objetivo, incluindo o corpo humano, ficou no campo da ciência, aberto à descoberta racional de suas leis. Esta dualidade cômoda foi atacada no século XIX pelo positivismo, resultando no surgimento das ciências humanas. O determinismo avançou, escorado no materialismo, como se fossem pensamentos gêmeos.
O maior orgulho do homem ocidental (mais do que a arte e muito além da moral) é a ciência. A cadeia das causas e efeitos, a harmonia matemática da natureza e as leis que os regem parecem ser segredos abertos à razão e suas infinitas possibilidades de conhecimento. O desenvolvimento tecnológico, a dominação das forças naturais a serviço do homem e a criação de um mundo artificial são provas reais das possibilidades aparentemente incomensuráveis do conhecimento científico, que se confirma nas suas previsões e realizações reforçando o orgulho das certezas, transformando-as em convicção. Certeza de conhecimento, convicção de poder: reforço e confirmação mútuos, que se recriam e reafirmam sucessivamente. A confiança no poder da ciência confunde-se com a convicção da certeza na determinação dos eventos. Incerteza torna-se sinônimo de ignorância. Para o homem medianamente esclarecido, a ciência se transmuda em fé no progresso humano, fé que não admite o pecado da dúvida.
A escrita, a fotografia, e outras formas de registro parecem transformar o passado em presença objetiva, enquanto a arquelogia e a história o tomam como objeto de estudo científico objetivo. Ao mesmo tempo, as ciências físicas parecem dotar o futuro da mesma categoria de certeza objetiva pelo determinismo de suas leis.
Se o orgulho das ciências físicas e da tecnologia é uma das características distintivas da cultura ocidental, sua outra marca é o entendimento da ética como uma espécie de ciência moral, dentro da tradição socrática e estóica. A ética, filosofia da ação, ciência da decisão, da escolha de acordo com valores objetivos, em harmonia com a Natureza e o destino natural das coisas.
Epicuro já apontava o paradoxo: há liberdade de escolha e responsabilidade se a resposta já está dada de antemão? "Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato, mais vale aceitar o mito dos deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os deuses, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade inexorável".[1] Prigogine, daonde retirei a citação remarca: "embora os físicos de que fala Epicuro sejam os filósofos estóicos, esta citação soa de maneira espantosamente moderna!"[2]
Até na matemática probabilística, o determinismo impera. Incerteza se define como ignorância, o inverso da informação. De fato, Shannon define informação como o inverso da entropia. "A entropia pode ser considerada uma medida da ignorância. Quando sabemos que um sistema está num dado macroestado, a entropia do sistema mede o grau de ignorância acerca do seu microestado, contando os bits de informação que seriam necessários para especificá-lo considerando todos os microestados possíveis como equiprováveis".[3] Mesmo depois da relatividade e da física quântica, o universo científico permaneceu determinista. "Por um lado, há a equação de Schrödinger, que descreve de maneira perfeitamente determinista como a função de onda de qualquer sistema evolui no tempo. E depois, de maneira perfeitamente independente, há um conjunto de princípios que nos dizem como usar a função de onda para calcular as probabilidade dos diferentes resultados possíveis produzidos a partir de nossas medições"[4]
O uso de uma equação probabilística reflete ignorância sobre as condições iniciais ou, ao contrário, a incerteza é um elemento constituinte da realidade, e a ignorância maior é a de quem pretende (tanto no sentido de querer quanto no de fingir) ter certeza?
O que está na base do novo paradigma científico da teoria do caos, que muitos ainda não entenderam, é exatamente isso: as leis da natureza não mais se assentam em certezas, mas sobre possibilidades, no sentido de um futuro aberto à evolução. A incerteza que está na base da probabilidade não é ignorância, mas sim a própria essência do futuro.
O interessante é que cerca de 200 AC, os fundadores da Segunda e da Nova Academia, criada por Platão séculos antes, numa reinterpretação dos muitos aspectos dos ensinamentos Socráticos, se imbuíram de argumentos céticos, negando a certeza e adotando uma visão probabilística para a condução da vida. Nada sobrou dos escritos de Arcesilau (315-241AC), mas Sextus Empiricus relata seus ensinamentos de uma filosofia das probabilidades. Carnéades (214-129AC) é um pouco menos desconhecido e fundava sua filosofia sobre três princípios: 1) nem os sentidos nem a razão podem fornecer certeza alguma; 2) a incerteza essencial do futuro; 3) a justiça é apenas uma instituição humana. Infelizmente, seus discipulos sentiram-se paralisados pela dúvida e degeneraram numa escola de filosofia "para oradores", buscando a eloqüência e o poder, como uma arte, mais do que a verdade, como ciência.
Este é o problema maior da incerteza: para enfrentá-la é preciso coragem e confiança. A dúvida é insuportável para os fracos de caráter. Estes preferem o conforto do mito, ou a ignorância sistemática como método. O método da ignorância sistemática, o não querer nem saber, no fim das contas, se aproxima muito do niilismo budista, e paradoxalmente, junta na mesma atitude o hedonista e o estóico. A ignorância sistemática é o que eu chamo de solução da abóbora: afundar-se na rotina e no presente, justificando que pensar não leva a nada e nada importa a não ser o presente, já que o futuro é incerto. A diferença entre o hedonista e o estóico é que um escolhe (ou colhe, no dizer de Horácio) o prazer e outro escolhe aquilo que considera ser o destino inevitável.

[1] Epicuro. Doctrines et Maximes. Trad. francesa de M. Solovine. Paris: Hermann, 1938. p.80.[2] Prigogine, Ilya. O Fim das Certezas. Trad. Roberto Leal Teixeira. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. p.18.[3] Gell-Mann, M. The quark and the Jaguar. London: Little Brown & co., 1994. p. 220.[4] Weinberg, S. in Scientific American, v.271, n.4, p.44, outubro 1994.

sábado, 14 de julho de 2007

Prigogine, Ilya - "O fim das incertezas"

Tenho de agradecer muito ao Jacó, que assistiu meu curso de Planejamento do Tempo esta semana e me indicou Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977 e excelente escritor. Comprei dois livros esta semana e estou devorando o primeiro. Novas luzes sobre filosofia da ciência e os limites da epistemologia e da ética, tudo entremeado por uma profunda intriga com a questão do tempo e da evolução.


Resolvi então unir o útil ao mais útil e, ao passo que leio, fazer uma resenha, apondo meus comentários no blog. Se isso não ajudar ninguém, pelo menos agradará à Bebel, que se irrita com meus livros sublinhados e rabiscados. Sublinhar e comentar me ajuda a compreender e reter. Fazê-lo no blog, será mais demorado, mas pode ajudar outros a compreender e até a corrigir minha leitura, mesmo enquanto ela é feita.


Prigogine (1917-2003) escreveu vários livros. Este "O fim das certezas" é de 1996. Seu tema: o desenvolvimento da física de não-equilíbrio e dos sistemas dinâmicos instáveis, associado à evolução na teoria do caos, força uma revisão do conceito de tempo, formulada por Galileu e Newton, e que, segundo ele, a teoria quântica manteve.


Nas suas palavras ele

terça-feira, 5 de junho de 2007

Moral ou Sobrevivência?

Vivemos o paradoxo de duas perspectivas (local e universal) e entre verdades opostas.

Do ponto de vista local e particular, a Lei da Selva é a verdade: "o mais forte (ou rápido) come o mais fraco (ou lento)". Ao seu lado, a Lei de Gerson se impõe: "eu antes". Na perspectiva individual, o egoísmo é um dado do real. Se não do animal, do gene. Quando se radicaliza na vertente de Darwin, o egoísmo se torna moral: utilitarismo. O gene que não pensa e opera segundo as leis da natureza produz moralidade e racionalidade no homem.

Leis da natureza? A perspectiva universal, o ponto de vista da eternidade (porque a realidade é eterna), inverte a verdade individual. Aqui impera a Lei Áurea - "não faz ao outro o que não queres que te façam" - e seu corolário, a Lei da Colheita: "colhes o que semeias". Quando o homem começa a plantar e pastorear começa a moral. Talvez por medo de outro mais forte, o forte não abate o fraco. Medo: moral de rebanho. Se se aprende a moral por medo e acata-se a lei por submissão ou prudência, pode-se depois compreendê-la através do conhecimento e adotá-la por opção. Aí, a moral do rebanho se torna uma ética indivídual e racional. Aí, a Lei Áurea encontra sua versão positiva: "faz ao outro o que queres que te façam". Uma ética de ação, e não uma moral de repressão. Chega-se ao ensinamento de Cristo: "ama ao outro como a ti mesmo". E, acrescente-se, não fica na intenção, demonstra esse amor por atos.

Na perspectiva da eternidade, também se inverte a métrica da valorização egoísta e imediatista. O eu, o aqui e o agora deixam de imperar. Na calma da apreciação, adquire-se a capacidade da transcendência: o todo vale mais do que a parte. Se é bom para mim e não é bom para a minha família, não é bom para mim. Se é bom para a minha família e não é bom para o meu povo, não é bom para a minha família. Se é bom para o meu povo e não é bom para a humanidade, não é bom para o meu povo. Chega-se à perspectiva ecológica: se é bom para a humanidade e não é bom para o planeta (Gaia?), não é bom para a humanidade.

Mas quem pode viver acima das nuvens? Quem tem calma para avaliar? O presente, cada vez mais instante, nos chama e nos prende na circunstância imediata. É nesta circunstância presente e local que se vive. Com urgência, mais do que calma, espicaçados por um sem número de demandas e oportunidade, encontros e desencontros. Neste mundo sem tempo para pensar, a lógica é local, a lei é a da selva e o valor maior é o eu. Será que o gene egoísta conseguirá sobreviver? Não percamos a esperança: depois que as idéias e o idealismo perderam a força, os baluartes da moral são defendidos pelos genes, e o utilitarismo resiste.

domingo, 3 de junho de 2007

Dinheiro, Poder e Amor

Dinheiro todo mundo sabe o que é, mas o que significa? Meio de troca, reserva de valor, unidade de contabilização. Vários e distintos conceitos, todos aplicáveis, nem sempre inteligíveis. Um amigo diz que o valor da pessoa é dado pelo seu saldo bancário. Respondo que isso só seria verdade se todas as trocas fossem justas e imediatas e que via pelo menos dois tipos de trocas injustas: a violência e o amor.

Violência: o forte impõe, e o fraco aceita (ou até propõe, por fraqueza) o desrespeito ao seu interesse. Nietzsche diria que isso dá exatamente a medida do valor ético (diferente do valor moral) de cada um. O fraco pode ser moral (por medo) mas não ético (por consciência do seu valor). Quem não vê valor em si mesmo, não se reconhece como árbitro legítimo dos seus valores e os buscará na opinião dos outros - os fortes, que se reconhecem como e se constituem em fonte de valor. Para Nietzsche o amor-próprio é a fonte de todo valor - e de toda força, o que para ele é a mesma coisa. Idealizado ou cínico, o poder se impõe pela força e se justifica pela sua eficácia, política boa é a que triunfa. O cinismo político de Maquiavel diz tudo: os fins justificam os meios, e o fim é a vitória. A moral da política não é a moral da virtude. A moral da política é a vitória. Injustiça pois, que seja: o ganho de um e a perda de outro é a própria afirmação do poder quando se constitui em valor.

E o amor? Como pode ser injusto se é absolutamente voluntário? Ora, o termo voluntário é empregado em dois sentidos. Num, designa o próprio agir (por oposição ao reagir): a escolha livre, consciente e responsável de um ato. No outro, vai mais além para designar a ação livre, consciente e responsável, sim, mas desinteressada ademais. Neste segundo sentido só é voluntária a ação que não visa o interesse próprio e o benefício imediato ou individual. O trabalho voluntário não pode ser remunerado. Dar sem esperar retribuição: injustiça, pois. Nada mais voluntário neste sentido do que o amor. Amor digo, não desejo. Nietzsche diria que só uma alma forte é capaz de um amor assim, totalmente independente e desinteressado. Poder-se-ia objetar, e com razão, que tal ato amoroso não é desprovido de interesse, que os interesses (valores) que o movem são de uma ordem maior, mas ainda individuais, têm sua fonte no próprio indivíduo (forte) que age e não no objeto. Amor digo de novo, não altruísmo. Só um eu forte para se libertar do peso do "caro eu", aquela fonte de engano das ilusões de ótica que privilegiam o aqui, o agora e o eu (narcísico), e simplesmente amar. Amor, a virtude mor, ou a essência de todas elas: o sentimento é tudo, a intenção basta, a conquista não é o objetivo. O poder é forte e conquista o que deseja, o que lhe falta. A virtude é boa e o amor é pleno, nada pede, nada quer, nada lhe falta. Em ética, virtude é tudo, poder não é nada.

Duas injustiças então, dizia eu: violência e amor. O desrespeito ao interesse do outro e o desrespeito ao interesse próprio (no sentido imediato). Nas trocas entre o poder violento e a virtude amorosa, o saldo pende para o primeiro. O saldo bancário, bem entendido. Talvez, para Nietzsche e Ayn Rand, para quem poder e valor se igualam e que vêm o egoísmo como fonte do bem, o valor da pessoa seria então esse saldo. Mas para Jesus, Spinoza e Diógenes, valor é ética, poder é outra coisa, e para eles, o egoísmo é a fonte de todo mal e de todo erro, e só o amor constrói, e o valor seria então o inverso do saldo bancário.

Onde a verdade? Você escolhe. No fim, uma questão de opinião e de gosto, pois qualquer raciocínio em termos de juízos de valor chega aonde partiu. Meu amigo está certo do seu ponto de vista, ele escolhe o poder como critério de valor. Meu amigo está errado do meu ponto de vista, eu escolho a virtude.

domingo, 20 de maio de 2007

Prazos

O dicionário traz duas acepções para a palavra prazo: "período de tempo" e "tempo determinado". Vamos aqui adotar a segunda acepção de tempo determinado. Neste sentido, uma ação tem vários prazos marcados por eventos. Os mais óbvios são os prazos de início (quando se começa a trabalhar efetivamente) e fim (quando se atinge o objetivo da ação). Há também o prazo limite, ou prazo fatal, a partir do qual não adianta mais fazer a ação. O prazo fatal é o momento em que o valor de fazer aquela ação cai a zero. Não importa quanto valor tivesse, após o prazo fatal, seu valor é zero. Qual o valor nutritivo da comida estragada? Qual o valor de uma proposta comercial não entregue no prazo?

Mas poucas coisas têm um prazo fatal assim. As coisas mais importantes não têm prazo. Não há prazo para ser feliz, não há prazo para se realizar um sonho, não há prazo para mudar. Ora, a reação natural é deixar para depois tudo que não é imediato ou que não tem prazo. Ao natural, as pessoas se mobilizam mais pela possibilidade de perda do que pela afirmação de valor. Por isso, para fazer as coisas que não têm prazo fatal ou cujo prazo fatal é distante, cria-se um outro: o prazo comprometido. O que ocorre no prazo comprometido não é a perda de valor da ação, mas a perda de crédito do promitente, embora este prazo possa ser renegociado antecipadamente sem grande perda de crédito.

Um outro instante característico de uma ação é o momento em que sua necessidade nasce, quando nos comprometemos a fazê-la, porque nos foi solicitada ou por uma tomada de decisão. Chamo esse instante de surgimento da ação. No surgimento, o compromisso de fazer, para ser firme, deve ter um prazo comprometido, caso não tenha um prazo fatal.

Um erro comum (outra reação natural e pouco inteligente) é agendar a ação no prazo dado. Se lhe pedem algo para sexta-feira, anotar um lembrete na agenda na sexta-feira, não é uma boa prática. Deve-se agendar a ação no prazo de ataque com uma folga. O prazo de ataque não é a data em que se vai fazer a ação, mas aquele no qual se começará a avaliar e a priorizar o início da ação. Ao definir um prazo de ataque com uma folga suficiente a pessoa se despreocupa. Isto é, o prazo de ataque, no fundo significa a data até a qual se pode esquecer aquela ação. Colocando estes prazos numa linha de tempo, percebe-se que a folga, na verdade, se divide em duas: a inicial, entre o prazo de ataque e o prazo de início estimado; e a final, entre o prazo de fim estimado e o prazo comprometido (ou fatal).

____!_________!________!______!________!_________!__
Surgimento..Ataque .Início ..Fim .
Comprometido Fatal..............!________!......!________!
............Folga Inicial >>>>Folga Final
.......................!______!
....................Duração estimada

A Síndrome do FDP *

O caráter do brasileiro, mestiço por excelência, tem vários traços já apontados na literatura: a cordialidade, a tolerância, o fatalismo apático. Mas creio que um aspecto nunca foi devidamente analisado. O brasileiro, filho de pai português e mãe índia, sofre da síndrome do bastardo. Para deixar claro, bastardo é a versão culta do termo chulo fdp, e designa o filho gerado fora do matrimônio.

O perfil psicológico típico do fdp é o do enjeitado. Tem raiva do pai, vergonha da mãe e baixa auto-estima. É filho do erotismo, mais propenso à expressão do que à sublimação do instinto. Portanto, não tem apreço pela família como instituição e dificilmente será um pai devotado ou marido fiel, tendendo a reproduzir o seu perfil em uma nova geração de filhos bastardos.
Por que o Brasil e os EUA tiveram índices de desenvolvimento econômico tão distintos, tendo ambos a mesma idade e extensões territoriais semelhantes? Obviamente, a diferença é cultural. A culpa é dos portugueses. Sempre é.

Uma explicação corrente ressalta a diferença de atitude em relação à riqueza entre a ética católica dos ibéricos e a ética protestante do colono americano. Para o catolicismo "é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus". Já, a ética protestante considera sinal de virtude a riqueza oriunda do trabalho. Creio, entretanto, que a síndrome do fdp se constitui em distinção ainda mais fundamental, que nunca foi devidamente ressaltada. Mais do que a Igreja, a família é a célula mater para a geração e reprodução dos valores morais e do caráter de um povo.

A família é uma criação eminentemente feminina. Para passar adiante os seus genes, a mulher conta com poucos óvulos, relativamente aos milhões de espermatozóides masculinos. É crucial para a fêmea que a prole sobreviva em um ambiente hostil e a família (a garantia do compromisso paterno) é a mais poderosa arma nesse sentido. Já o homem produz espermatozóides suficientes para colonizar um continente sozinho. Se não lhe for cobrado nenhum compromisso posterior, ele pode até fazê-lo apenas para satisfação do desejo momentâneo.

Nos EUA, a colonização foi feita por famílias. Famintas, degredadas sociais pela falta de perspectivas no velho continente, mas, ainda assim, famílias. Onde a figura da mãe era dominante, jogando um papel agregador e motivador para a construção de um novo lar definitivo. Uma visão de futuro: a recuperação da dignidade familiar na nova terra dependia da riqueza que se pudesse construir pelo trabalho. A ética protestante é um elemento facilitador, sem dúvida.

Ora, a colonização do Brasil, assim como a da Austrália, diferentemente da americana, foi essencialmente masculina. Aventureiros e mandatários degredados que, distantes dos vínculos afetivos, familiares e sociais em que foram criados, construíram novos vínculos, mais por necessidade e interesse do que por escolha. O português "se unia" às índias (assim no plural) "em pecado" e as enjeitava como símbolo deste pecado, bem como aos frutos dessa união eminentemente carnal, consumada sem respeito pela parceira. Nessa família mestiça, o pai era a figura dominante, dada a superioridade cultural. Um pai com remorso, saudoso, aventureiro, temporário, voltado para o passado, para a terra à qual voltaria com as burras cheias e a alma vazia. Um pai cuja visão de futuro era a de um retorno ao passado. Uma mãe criança, só vivendo o presente, inocente e tragicamente sem expectativa, sem futuro. Essa preponderância do macho sem vínculos familiares, mais tarde, se reproduz na relação com a escrava negra. O erotismo se sobrepõe ao respeito e ao compromisso na noção de amor brasileira, com profundos reflexos na família como instituição.

* Texto originalmente publicado no Baguete em 22/09/2003 e posteriormente no livro "O Entregador de Sonhos"

Radical de Centro *

As pessoas se declaram de esquerda ou direita por afinidade. Por afinidade de interesses ou afetiva, o posicionamento político é mais emocional do que racional: um perfilamento simpático – ou uma rejeição antipática – a pessoas mais do que a idéias. Uma variante diz respeito ao poder: ser simpático ao poder é de direita, contestá-lo é de esquerda.

Falar esquerda e direita condiciona linearidade em uma única dimensão. O senso comum considera o liberal à esquerda do conservador e à direita do socialista, e o anarquista ainda mais à esquerda. Entretanto, o pensamento conservador tem afinidades com o socialista pela ênfase na ordem e na segurança, enquanto o pensamento liberal converge com o anarquista na valorização da liberdade individual como princípio máximo e na desconfiança em relação ao Estado.

Entendo que a escolha entre esquerda e direita se dá em vários eixos, que representam conceitos opostos. Para isso desenvolvi um ideologímetro que marca a posição intermediária entre estes conceitos. Marque no ideologímetro abaixo onde você se situa:

Comunidade.. _____________!_____________ Indivíduo

Igualdade... _____________!_____________ Liberdade

Segurança... _____________!_____________ Risco

Planificação _____________!_____________ Competição

Uniformidade _____________!_____________ Diversidade


Estabilidade _____________!_____________ Mudança

Natureza.... _____________!_____________ Tecnologia

Ideológica e politicamente me declaro um radical de centro com tendências para a direita. Muitos pensam que é blague, pois acham que radicalismo pressupõe extremismo. Mas, radical é quem vai à raiz do problema, com disposição e disciplina para refletir e analisar todos os lados da questão, suspendendo o julgamento passional interessado.

O "radical" extremado, ao contrário, adota uma posição afetiva, baseada em interesses e não em análise. O "radical" é do contra, se opõe ao que considera diferente, por antipatia baseada mais em sentimento e interesse do que em raciocínio. O "radical" não tem lógica, tem convicção. Certeza visceral, não cerebral. A raiz do conflito político está na paixão cega de quem defende o seu lado, no qual supõe toda a virtude, e joga no outro todo o vício. Isso se chama maniqueísmo. Esta paixão é veemente e o "radical" é veemente na defesa do seu interesse, sempre racionalizado como interesse comum ou verdade definitiva.

Aliás, a veemência é a única característica do "radical" extremista que procuro manter. Defendo veementemente a liberdade de idéias, o pensamento livre e o mais desinteressado possível, o direito que todos têm de defender interesses respeitando o direito dos outros de fazer o mesmo.

O interesse individual deve se subordinar ao interesse coletivo. Mas não existe “o” interesse coletivo, “o” bem comum. O interesse coletivo surge da negociação dos interesses individuais. Não se trata de defender fins, mas sim de assegurar os meios para que essa negociação se efetue. A isso se chama estado de direito.

Platão errou ao jogar a ética para um plano metafísico afirmando a existência de um Bem absoluto e inventando a praga do idealismo. Ética não é coisa de deuses desapegados, é coisa de homens interessados. Todos têm interesses próprios e a sua defesa é legítima. Não é uma questão de fins, danem-se os fins. Os meios é que são éticos. Se o mal existe, ele se chama violência. O que há de terrível na sentença de Maquiavel de que os fins justificam os meios é que ela sanciona a violência.

O uso da força permite ao forte impor suas idéias e manter o poder. Pode-se pedir ao mais forte que não use a sua força? Sim, mas isso é antinatural. O forte só deixará de usar a sua força por temer a união dos fracos. Ou por aceitar o imperativo categórico de Kant. Seja por medo ou pudor, é na repressão do uso da força pelo forte que se baseia o estado de direito.

Mas isso pode facilmente descambar para a ditadura dos fracos – a ditadura do rebanho que, de fato, é sempre uma ditadura de pastores disfarçada. Foi essa a revolução dos séculos XIX e XX, comandada por Nietzsche e Freud: a reabilitação da potência do indivíduo, o uso consciente das forças instintivas do indivíduo como critério maior de verdade e valor.

Para o socialista todos os homens são iguais, mas, quando estão no poder, uns acabam sendo mais iguais do que outros. Os liberais defendem a livre circulação de pessoas e mercadorias, mas de preferência num sentido só – do centro (de poder) para a periferia. Socialismo e liberalismo são utopias – coisas de idealistas. Idealistas querem o poder para colocar em prática suas idéias, o que é um interesse próprio. Defender o interesse próprio é legítimo, desde que se reconheça ao outro o mesmo direito. Por isso, simpatizo um pouco mais com os liberais, embora aqui também se encontrem convictos. O idealista acha que sabe o que é melhor para os outros, pois está do lado da verdade absoluta. Eu tenho muito receio disso. Aliás, me oponho radicalmente a isso.

* Este texto é uma revisão de artigo originalmente publicado no livro "O Entregador de Sonhos"

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Economia, Finanças e Dinheiro

Aprendi a diferença entre economia e finanças aos 20 anos, dramaticamente, quando meu pai morreu. Herdei um apartamento e um carro, mas nem um centavo de renda. O que eu ganhava como estagiário pagava a comida, mas não a gasolina. Razoável situação econômica, situação financeira apertada. Suplementei a renda fazendo fotografia, sem deixar de estudar e sem vender o carro.

O capital rende juros ou aluguel e o trabalho rende salário. Na verdade, o trabalho é o produtor original de valor e o capital é o valor acumulado que, quando aplicado (somado ao trabalho), se reproduz por multiplicar a produtividade do trabalho.

A renda é poupada ou consumida. Se há poupança, o capital tende a crescer, enquanto o consumo diminui o capital. Não é o gasto que diminui o capital, é o consumo. Porque o gasto assume duas formas: consumo e investimento, as quais têm a ver com o tempo. Consumo é o gasto sem conseqüência futura. Seu objetivo é o desfrute ou o uso aqui e agora. Do outro lado, investir é gastar agora em função de um possível ganho futuro. Aliás, o homem passou a contar o tempo quando passou a investir.

Dinheiro não traz felicidade, mas falta de dinheiro traz infelicidade. Ganhar dinheiro é diferente de ter dinheiro. Ser rico é ter, ganhar ou gastar dinheiro? Parece mais rico quem mais gasta, e quem tem fama de rico, tem crédito - lhe oferecem dinheiro esperando retribuição. Quem guarda tem, e não gasta. Mas, acumular dinheiro, não é viver uma vida rica. Por outro lado, gastar sem poupar, pode trazer infelicidade futura ou transformar-se num vício em que a sede de consumo se torna insaciável, criando novas necessidades sem qualquer base racional.

Rico é quem tem mais do que precisa. Porque ganha, ou porque tem mais do que gasta. E quanto cada um precisa gastar para ser feliz? Sempre fui rico, porque mesmo lá, quando ganhava apenas o suficiente para pagar a comida e a gasolina, eu era feliz.

Missão de Fada *

Identifico-me completamente com o lema inspirado e inspirador da Junior Achievement: “a vida é um caminho, não um destino, e você é o arquiteto do seu caminho”. Nossa missão é fomentar a cultura empreendedora e seus valores morais e mostrar aos jovens que a empresa privada é a célula matriz da geração de riqueza e das trocas justas. Num país com muitas carências é difícil para o jovem aceitar o paradigma da abundância, segundo o qual a riqueza se cria e a união de um mais um é mais do que dois. É mais natural pensar sob a ótica da escassez, da riqueza estática, que só pode ser conquistada se for tirada do outro, visto como algoz, mais do que como igual.

Também é nossa missão mostrar que competição não é algo que se faz contra os outros, mas sim com os outros, contra as próprias limitações. O sucesso dos outros e o nosso são medidas comparativas do esforço conjunto de superação, no desenvolvimento de competências. Ser competitivo é desenvolver capacidades, tornar-se mais competente. A raiz latina das duas palavras explica: “com = junto + petere = buscar”. O que se busca? A superação e o crescimento pessoal. As maiores limitações estão dentro de nós. Competição é superação e o maior exemplo disso é o esporte. Em suma, a competição não exclui a solidariedade, mas, ao contrário, é o maior sinal de respeito pelo outro, pois o auxilia no seu crescimento e o desafia a sair da zona de conforto da ignorância, da pobreza e da fraqueza.

Num sistema de ensino que prepara os jovens para o emprego, mais do que para o trabalho, preciso transformar sapos em príncipes, dando-lhes o beijo de fada do exemplo. Mostrar pelo exemplo, mais do que pelo discurso, que se pode criar valor sem tirá-lo de ninguém e que a criação de valor (e não a eventual remuneração ou o esforço) é a verdadeira finalidade de todo trabalho. O trabalho voluntário “é” essa mensagem.

Acredito firmemente no poder da inspiração e do trabalho conjunto em clima de cooperação. É incomensurável a potência criativa adormecida nos corações e mentes dos jovens. O despertar desta vontade de potência é um momento mágico que o trabalho na Junior Achievement proporciona: o momento da transformação do sapo em príncipe. Mas é difícil beijar sapos. É mais fácil virar sapo e aceitar o brejo, praticando o reconfortante discurso de vítima, que louva a fraqueza, atribuindo aos outros (ou ao governo) a culpa de todos os males e, vez por outra, lavar a alma na prática do sacrifício de algum bode expiatório. Acredito que muitos empresários precisam também de uma injeção de empreendedorismo, e podem ganhar muito com o trabalho junto aos jovens.

Embora alguns traços de temperamento favoreçam o desenvolvimento do espírito empreendedor, ele está ao alcance de qualquer um, com maior ou menor grau de dificuldade. A genética e o ambiente podem facilitar enormemente, mas não impedem o crescimento. O ambiente empreendedor se caracteriza pela flexibilidade das interações sociais e das trocas entre as pessoas. Portanto, também é nossa missão lutar pela liberdade e pela democracia como valores máximos das instituições. E, também aqui, convém unir a ação ao discurso.
A boa nova é que a filosofia empreendedora vem se afirmando e o ambiente é cada vez mais propício ao empreendedor. Acredito que este é o século em que será reconhecida a verdade de Schumpeter de que o empreendedor é a mola mestra de todo desenvolvimento econômico. Mas vou além. Entendo que o empreendedorismo é o caminho do crescimento pessoal e do desenvolvimento do caráter: transformar sonhos em metas e buscar a sua realização; visualizar soluções para os problemas e ter a coragem de admiti-los e enfrentá-los. Empreendedorismo é uma filosofia de vida – aliás, a melhor. A vida produtiva e criativa, aquela que vale a pena ser vivida, é uma série de empreendimentos. Crescer sempre, pois apenas sobreviver é uma meta mesquinha. Parodiando o lema dos navegadores antigos: “Empreender é preciso, viver não é preciso”.

* Discurso de Posse na AJA-RS - 2006

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cultura In e Útil

Cultura é "in". Impressiona a memória fática, que reduz os grandes vôos do espírito às suas circunstãncias psico-sociais. Cultura é útil. Ao contar a história das idéias e dos sentimentos, encadeados como causas dos seus efeitos e efeitos das suas causas, ajuda o homem a ser agente e causa, mais do que vítima e efeito, da sua circunstância. Idéias estão aí há séculos, entrando e saindo da moda, ao sabor dos sentimentos vigentes. Parecem inatas, mas são pensadas e sentidas. Tão mais inatas parecem quanto maior a carência afetiva da época que anseia por elas. Dogmas são convicções entranhadas, portanto mais intestinas do que cerebrais. Mas chega de filosofia em primeira mão, vamos à de segunda, que tem mais autoridade.

O estoicismo de Zeno disputou com (e perdeu para) Epicuro os corações e mentes dos séculos 2 e 3 AC. A primeira disputa entre as duas grandes filosofias morais da Antiguidade, não foi um 4x0, mas um 6x4. No segundo turno, em Roma, o estoicismo teve a sua desforra, agora sim, 4x0. Foi só mais recentemente, a partir do Renascimento e, com mais ênfase, nos séculos 19 e 20 que o epicurismo voltou à primeira divisão.

O princípio ético do estoicismo (aí o útil) é: o que importa é a virtude, única finalidade verdadeira. Nisto, afirma a liberdade humana. Virtude depende apenas da vontade e a vontade é sempre livre para ser boa ou má. Felicidade é praticar a virtude, evitando o engano dos prazeres mundanos. Mais do que prazer, é paz de espírito, ausência de dor, tranqüilidade e harmonia - estado de alma designado como "ataraxia". É evidente o parentesco com o desapego budista. O segundo princípio estóico, o deteriminismo, encerra uma contradição. A vontade é boa quando está de acordo com a Natureza, entendida não como realidade contingente, mas como princípio orgânico do Universo, com suas leis e finalidade.

O "in"teressante não é a história do campeonato, mas a emoção da partida, a circunstância do goleador. Os heróis do segundo turno do estoicismo romano são Sêneca, Epícteto e Marco Aurélio, um ministro, um escravo e um imperador. Sêneca foi marcado pela contradição. Adepto da virtude reta e da simplicidade, foi o tutor de Nero, e, sob seus auspícios tornou-se um dos homens mais ricos do seu tempo. Nero, porém, redimiu-o moralmente pelo suplício, condenando-o à morte, e concedendo-lhe a graça do suicídio, no que pôde imitar Sócrates, o "santo" do estoicismo.

Epícteto, escravo, fresteava as aulas dos filhos do amo. Espírito interessado e interessante, impressionou o tutor, que o levou para Roma com os jovens amos estultos. Voltou filósofo, estóico, mas ainda escravo. O amo questionou seu estoicismo radicalmente, colocando sua perna num torno: "quem controla a tua vontade?". "És dono do meu corpo, não da minha vontade", continuou respondendo Epícteto até ter a perna estilhaçada, coxo para sempre. O amo, acabrunhado pelo remorso deu-lhe a liberdade (de corpo). Epícteto escreveu "A Arte de Viver", com conselhos úteis repetidos pelos manuais de auto-ajuda modernos, sem citar a fonte esquecida ou ignorada: distinga o que depende da sua vontade e o que independe dela, aja apenas sobre o que pode influenciar e não se deixe influenciar pelo que está fora do seu controle; não são as coisas que nos perturbam, mas sim o significado que lhes emprestamos; o que fazemos é menos importante do que a maneira como o fazemos: a harmonia da vontade com a Natureza é o seu maior ideal; aceite a realidade como ela é, sem ilusões; concentre-se na realidade do presente, que será verdadeira para sempre; caráter importa mais do que glória. E por aí vai.

Marco Aurélio, último imperador da época áurea dos Antoninos, escreveu as "Meditações" para si mesmo. Precisava muito da força moral que pregava. Enfrentou pestes, guerras e insurreições. Seu único filho, Cômodo (retratado no filme Gladiador), acabou sendo um dos piores entre os imperadores maus, mas ocultou sua índole durante a vida do pai. Durante as longas ausências de Marco Aurélio nas campanhas de guerra e missões de paz, sua esposa Faustina, foi acusada de imoralidade. Ele morreu no campo de batalha, em paz consigo e admirado pelo povo. Seu legado imediato foi infeliz, mas sua influência filosófica e autoridade moral perduram.

Pode-se administrar o tempo?

No colégio aprendemos que tempo é a dimensão onde o movimento ocorre. Vemos então o tempo como uma reta, algo abstrato, mas ainda assim, algo. Mas Leibniz intuiu e Einstein explicou que o movimento não se dá “no tempo”. Tempo “é” o movimento das coisas, não uma coisa em si. Seu tempo é o que acontece e o que você faz acontecer. Seu tempo é sua vida.

Entretanto, tempo e vida parecem distintos. Tempo é trabalho e dever, vida é nos fins de semana ou nas férias – o lazer. Cria-se o conflito entre uma persona moralista, que cumpre deveres, atarefada e ocupada; outra hedonista, que frui prazeres, ociosa e livre. Desde pequenos vamos ao colégio para aprender algo útil para, no fim, ganhar dinheiro. A mensagem subliminar é clara: a finalidade da vida é o dinheiro. Alienação do trabalho, cuja finalidade, para o indivíduo, não é mais gerar valor, mas ganhar dinheiro. A vida torna-se uma competição para acumular dinheiro, trabalha-se para deixar de trabalhar, criar uma reserva de prazer, o mito da euforia perpétua e do ócio permanente. Loucura? Psicopatia social. Porém cuidado: negar que o tempo é dinheiro pode ser uma sociopatia.

Pode-se administrar o tempo? Ou, por outra, pode-se viver melhor? Existe técnica para isso? Várias. A ética, a psicologia e as terapias psi, buscam isso: fórmulas para viver melhor, a felicidade possível. Então, não se controla o tempo em si, mas pode-se adquirir um pouco de autocontrole e agir de maneira mais consciente e racional. Não existe falta de tempo, mas sim falta de prioridade. O que se pode definir é a prioridade dos eventos que dependem da vontade. Essa é a base de toda disciplina moral. Mas, desde Freud, sabemos os riscos dessa disciplina se basear na repressão inconsciente da expressão emocional.

Separo a questão em duas esferas que se confundem: organização e planejamento. Organização é reagir bem, responder proativamente. Planejar é agir continuada e cumulativamente para mudar o que acontece. Uma é adaptação às circunstâncias e às limitações, a outra é mudá-las e superá-las. Uma é realizar a rotina de forma correta, a outra é mudar e criar novas rotinas. Uma é adaptar-se, outra é tentar mudar. Há uma certa ruptura e até conflito. O planejamento requer uma quebra da rotina e compete com ela. É preciso ceder de um lado e dar atenção ao outro equilibradamente.

A fórmula da organização:
· Anotar o que acontece (para esclarecer e não esquecer) e dar respostas.
· Contar até três antes de reagir para poder escolher a melhor resposta;
· Ao escolher, ser fiel aos próprios princípios e valores – às bases filosóficas. Valor é o que se crê ser correto; princípio é o que se acha que é verdade.
· Dedicar tempo à reflexão e ao diálogo para questionar e solidificar a base (princípios e valores).

A fórmula do planejamento é um processo em três níveis:
· Político: a coragem de definir metas difíceis e encarar os problemas maiores. Política é a arte do presidente.
· Estratégico: analisar causas e dividir o problema/meta em objetivos intermediários. Estratégia é a arte do general.
· Tático: avaliar o que já fez e decidir o que pode ser feito no próximo período, e adaptar metas e estratégia às circunstâncias reais. Tática é a arte do sargento – usar a estratégia para enfrentar o campo de batalha e adaptar a estratégia em função da realidade.

No fundo, toda organização é emocional. O método acima ajuda a pensar bem para sentir melhor, melhora a inteligência emocional. É o caminho do desenvolvimento do caráter segundo a ética das virtudes. Convém beber na fonte do ABC da virtude: Aristóteles, Buda e Confúcio. A essência é a prática de três disciplinas: reflexão, planejamento e atenção. Disciplinas não são naturais, precisam ser aprendidas e desenvolvidas. A maneira de desenvolvê-las consiste na adoção de três hábitos:
1. Tempo Calmo de 15 minutos por dia para fazer um Plano Diário, separando as ações com prazo dos compromissos com hora marcada para iniciar e terminar, e priorizando as ações segundo o método ABC.
· A (importante e urgente),
· B (importante, mas não urgente)
· C (não importante, urgente ou não).
2. Encontro Pessoal de 30 minutos no fim de semana para repassar a semana anterior atentando para os sentimentos evocados. Não se controla os acontecimentos, mas pode-se elaborar seu significado e a forma de reagir a eles. Analisar as iniciativas a serem tomadas na próxima semana para encaminhar as metas/problemas mais difíceis.
3. Durante o dia, anotar os contatos, idéias e pensamentos num Diário. Revisá-lo no Tempo Calmo e/ou no Encontro Pessoal.
Também é importante saber desfrutar o presente e não esquentar demais a cabeça, pois “a longo prazo, todos estaremos mortos” (Keynes).

A verdade virou notícia

Jornalismo e filosofia lidam com informação e conhecimento de formas opostas. À filosofia interessa a informação mais perene: a verdade essencial e permanente. O jornalismo lida com a notícia: a novidade imediata e fugaz. Enquanto sabedoria mais antiga é a melhor filosofia, a notícia de ontem já é velha. A filosofia sonda os aspectos mais sutis das idéias e das palavras, procura a perspectiva múltipla que questiona a si mesma e busca o peculiar e o olhar incomum. O jornalismo, assim como a propaganda que o alimenta, busca a identidade, deve usar a linguagem popular e comum, traduzindo e filtrando tudo o que pode não ser compreendido pela cultura em que se insere.

Nos tempos que correm, a inundação de notícias, propaganda e informações fugazes é tanta que o público perdeu a noção das antigas verdades maiores. Assim, elas ganharam ares de novidade, viraram notícia. A sabedoria reciclada em auto-ajuda é comercializada nas esquinas da Internet da mesma maneira que os sofistas faziam na antiga Atenas.
Mundo redondo que gira, gira e não sai do lugar.