quinta-feira, 11 de junho de 2009

Cap. 1 - Escravos do Tempo - Parte 1

It’s still the same old story,
A fight for love and glory,
A case of do or die.

As Time Goes By
(música do filme Casablanca)
letra e música de Herman Hupfeld

Na República [1], Platão divide as pessoas em três classes, de acordo com a natureza de suas almas: os homens de ouro (natureza racional), os de prata (natureza espiritual) e os de ferro ou bronze (natureza apetitiva). Embora todas as almas contenham todos os três elementos, há uma natureza distintiva, determinada pelo elemento dominante.

Para Platão os homens de ouro estão no topo da hierarquia como aqueles que, pela via da racionalidade, aprendem a reconhecer o que é o “bem em si”, o “valor verdadeiro”, apresentam um comportamento ético e equilibrado, cultivam as virtudes e realizam o seu potencial humano, buscando sempre o aprofundamento do saber através da reflexão filosófica. Para Platão, apenas a alma racional pode vislumbrar o conhecimento “verdadeiro” das idéias por trás das coisas e assumir completamente a responsabilidade pelo seu destino. Os homens de ouro constituiriam a “classe ociosa” dedicada à filosofia – estudo e contemplação das idéias e da verdade –, à arte – criação e contemplação do belo – e à política como administração da justiça. No mundo grego, a verdade, a beleza e a justiça eram os valores máximos. Utilidade, técnica e economia não eram valores, mas encargos. O ócio era um atributo nobre e o trabalho um encargo vil.

Os homens de ouro seriam os únicos que poderiam alcançar a verdadeira felicidade, pois tinham aquilo que os gregos chamavam de sofrosyne. Moderação, sobriedade, temperança, chegam perto do seu significado de meio termo entre impulsividade e insensibilidade. Somos sofron quando nos recusamos a ser pegos pelo imediatismo de uma situação, quando consideramos as conseqüências futuras de nossos atos. Talvez a melhor tradução de sofrosyne seja aquilo que hoje se entende por inteligência emocional [2].

Na base inferior da pirâmide platônica, os homens de ferro consomem a vida em prazeres imediatos ou afundados na rotina cotidiana, sem consciência de si mesmos e sem o comando da própria vida, condenados a uma vida servil e alienada.

A forma ideal de governo preconizada por Platão, na República, era a aristocracia ou governo dos melhores[3]. A aristocracia helênica não privilegiava sangue ou classe, mas repousava na distinção entre os que conhecem a si mesmos e vivem a verdade e aqueles que não o fazem. Qualquer um poderia ascender nesta escala desde que aprendesse a dominar sua vontade e a praticar a racionalidade.

Para os helênicos a alma se sobrepunha ao corpo, e a razão seria o principal atributo da alma, única forma de conhecer as idéias, consideradas mais verdadeiras do que as coisas. O cristianismo substitui a razão pela fé, mantém o primado da alma, mas a razão não basta para atingir a verdade. Trata-se, então, de ser iluminado por Deus. A idéia de Deus só é intuída por um ato de Sua graça. O clero torna-se uma nova classe ociosa a dedicar-se aos serviços espirituais, voltados para a busca de graça e da salvação. Mais tarde, o Renascimento marca a volta do ideal grego da razão como fonte de todo conhecimento, porém o conhecimento dos fatos (a ciência) se sobrepõe ao conhecimento das idéias (a filosofia). A ciência se torna prática, gerando a tecnologia e a indústria. O mundo passa a girar em torno da economia e a utilidade se torna o grande critério de valor. Protestantismo, liberalismo e marxismo, a religião e as ideologias da sociedade industrial condenam o ócio, e o trabalho passa a ser o grande criador de valor, num mundo essencialmente econômico.

Na filosofia moral, a razão pura, como origem de todo bem, encontra em Kant sua expressão máxima, para se revelar em Schopenhauer, como a outra face de uma abnegação (ou negação de si mesmo) que leva a uma frieza mortal e à negação da vida. É Nietzsche quem reage e coloca o corpo, a emoção e o indivíduo numa posição privilegiada. Neste caminho, surgem a psicanálise de Freud e a psicologia científica de Pavlov e Skinner a mostrar que os motivos do comportamento humano têm componentes inconscientes e subconscientes que a razão desconhece; surge Marx e as ciências sociais a mostrar que as condições sociais e históricas determinam comportamentos, valores e idéias; Darwin vem mostrar que o homem é apenas uma espécie entre outras; e, por fim, a ecologia mostra que apesar de todo progresso material, ou melhor, por causa dele, talvez essa espécie não seja a mais apta a sobreviver. Essa é a famosa desconstrução pós-moderna da razão: a noção de que a razão pode não ser a luz a iluminar a escolha da ação futura, e que é muitas vezes uma desculpa para a ação passada, permitindo que o homem não depare com o seu lado negro e possa esconder da própria consciência motivos desagradáveis que atestam o pecado original de sua animalidade congênita.

Os helênicos constituíram uma civilização admirável, berço de toda a civilização ocidental, racional e científica. Entretanto, a sociedade helênica era nitidamente excludente. Seu conceito de cidadão excluía as mulheres e os não-helênicos. Além disso, o ideal platônico baseava-se na negação das emoções e dos instintos, o que Freud chamou de repressão e acusou como a causa de muitas doenças da mente e do corpo. Entretanto, o ideal grego do filósofo parece encerrar alguma verdade. Nesse sentido, as pessoas se dividem em dois tipos. As pessoas verdadeiramente livres, que praticam a filosofia, conhecendo a si mesmas (inclusive suas imperfeições) e assumindo a responsabilidade pelo que fazem do seu tempo; e as pessoas ocupadas que, por coerção, necessidade, estreiteza de visão, ou imaturidade emocional, têm o seu tempo ocupado, determinado externamente e apenas subsistem como escravos do tempo.

Na civilização ocidental pós-moderna, baseada em sistemas de informação e troca em escala global, o problema da liberdade ressurge de maneira muito viva. Há quatro séculos instituiu-se o modo de vida capitalista, calcado no emprego: uma troca de trabalho, medido em tempo, por dinheiro. Girando em torno do emprego, os três conceitos se confundem. Tempo, trabalho e dinheiro parecem ser três aspectos de uma mesma realidade. Entretanto, ao pensar melhor deve-se reconhecer que tempo, dinheiro e trabalho são conceitos distintos. Tempo é vida, dinheiro é reserva de valor ou meio de troca, e trabalho é geração de valor.

Tem-se, hoje, um acesso muito mais democrático ao conhecimento. O conhecimento e a sabedoria acumulados são muito mais variados e profundos do que o eram na Grécia. O desenvolvimento tecnológico e o aumento da produtividade do trabalho permitem que, em termos médios, as pessoas tenham mais tempo livre. O desenvolvimento da medicina e das condições de higiene aumentaram a expectativa de vida média. Ou seja, a possibilidade de ócio é maior e para mais gente. Mas, embora em termos absolutos (e mesmo em termos relativos) existam, hoje, mais “homens de ouro” do que na Grécia antiga, o modus vivendi moderno tende a condicionar a proliferação de “homens de ferro”, verdadeiros escravos do tempo. A grande maioria “não tem tempo” para cultivar outros valores que não se traduzam em dinheiro e consumo.

[1] PLATÃO. República. Livro III.
[2] GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995.
[3] Em grego aristos significa “o melhor”.

2 comentários:

Victor Fisch disse...

Fantástico.

Navegando aleatoriamente em busca de reflexões sobre este que é o meu tema predileto, o tempo, me deparo com este texto preciso e perfeito. Parabéns e obrigado.

Ivone de Queiroz disse...

Gostei muito. Parabéns !!!
Ivone