sábado, 8 de setembro de 2007

Olhar e Ver

A criança olha, o adulto vê. Ver é reconhecer, olhar é captar. Há algo mais atento do que o olhar de uma criança de colo? Atenção pura, percepção pura, puro presente, presença total. "Ao lado disso, o restante da nossa vida nos parecerá coisa de segunda mão ou emprestada, como algo um tanto sem viço, usado, desgastado", diz André comte-Sponville. Felizes dos que mantêm essa capacidade infantil do olhar atento que se surpreende com o mundo. Pobres dos que aprendem a ver, a selecionar o que faz sentido, o que se enquadra no conhecido, e a descartar o resto.

Para a criança, basta inclinar a cabeça e tudo muda. Porque muda o todo. Encantamento, mágica, fruição da percepção: o novo, o diferente, acolhidos com um sorriso. A criança olha o todo. O detalhe que muda, efetua a mudança do todo. O adulto analisa: uma parte mudou, o resto não. Sabedoria? Ou ignorância dos efeitos holísticos? Olho e não vejo. Está lá mas não reconheço. Porque minha atenção se volta toda para aquilo que, no olhar, reconheço. O brilho do que vejo ofusca o resto e me cega. Aprender a ver, desaprender a olhar.

Amadurecer. Afirmar. Não ver, por rejeitar. Olhar que não quer ver. Olhar estúpido. Estúpido porque não é amoroso, gentil, acolhedor. Porque é seletivo, porque rejeita. Olhar militante. Olhar que nega, nega reconhecimento, nega acolhida. Olhar duro, olhar arguto, olhar de rapina: fixo no objetivo. Rejeita tudo o mais.

Envelhecer. Olhar sem ver. Olhar estúpido. Não é que nada reconheça, mas sim que nada o surpreende. Tédio que supõe conhecer tudo ou que não quer conhecer mais nada. Cansaço da surpresa. Enfado de quem não quer mais nada de novo. Enfaro, rejeição do aprendizado, vontade de ignorar tudo. Desejo do nada. Vontade de morte.

Luto

Trabalho de luto. Trabalho requer esforço. Esforço para gerar um resultado. Um resultado que tenha valor.

Luto é trabalho. O luto requer esforço. Esforço da resignação à vida, esforço para não desistir, para resistir à morte, à tentação da morte. Esforço para voltar a escolher a alegria, para afirmar o direito à felicidade. Requer esforço, pois se sonda o abismo: a gravidade - força gravitacional, não sisudez - da morte, do nada. O luto é uma subida, uma volta ao plano e ao pleno, depois do escorregão no nada, no vazio. Vazio de sentido, vazio de sentimento, que muitos preferem à dor da perda.

Luto é trabalho. O luto tem um objetivo, visa um resultado. Qual? A volta. A capacidade de voltar a sorrir, mesmo sem inocência, apesar de conhecer a dor e o horror, apesar de saber. Esta é a força maior: resistir à força maior do destino. Nosso destino é a morte. Por isso é preciso escolher a vida.

Luto é trabalho. Trabalho da perda. Aprendizado da perda. Aprendizado da morte. Aprender a morrer é aprender a viver. Sem medo da própria morte, ensinava Epicuro, pois esse medo não tem sentido. Nossa morte não nos alcança: quando ela advém, já não somos nem sentimos. O sentido do medo, sua utilidade? Evitar a dor. Medo: dor subjetiva e preventiva para evitar a dor real. Não há sentido no medo de uma dor que não será sentida, que não pode ser dor presente. Medo sem sentido, da morte inevitável, inunda a expectativa. Consciência da morte, convicção do medo, pecado original.

Se eu não sofrerei na minha morte, porque sofrer por ela antes? Porque a morte nos alcança antes pela perda. Dos pais, da juventude, da saúde, da potência, da inocência, da vitalidade. Perdas naturais, esperadas, adiadas, inexoráveis. Ou perdas inauditas: a perda de um filho, a perda de um órgão.

E a perda do tempo! Esta morte (ou vida?) a conta-gotas, que os inconscientes não percebem ser um rio. Cada dia a mais, cada minuto a mais, é um dia a menos, um minuto a menos. Cada dia ganho de experiência é um dia a menos de vivência e um dia a menos de expectativa. Um ganho (a experiência) para duas perdas (do desfrute e do sonho). O valor do que se perde se transmite ao que se ganha, se se escolhe com consciência. Aceitar esse fato, compreendê-lo e acalentar-se com ele é o que se chama de sabedoria.

Luto bom, luto mau. De qualquer forma, por qualquer perda, o luto requer uma parada e recolhimento. Uma quebra na continuidade inconsciente da vida agitada, do movimento sem sentido. Tempo de reflexão: afinal qual o sentido? Tempo de acalanto - desespero consciente: desistir da esperança e da ilusão - luto bem feito. Não se trata de esquecer. Esquecimento sedativo. Sedar-se, matar-se um pouco, anular um pedaço de si. Ou tempo de catarse e esquecimento - desespero inconsciente: revolta contra a desilusão, volta a uma ilusão forçada, falsidade, loucura - luto mal feito.

No fim do luto bem feito, a volta. A volta ao caminho. Qual o sentido? O sentido não está no fim. Pois o fim, certamente, é a morte. O sentido da vida não está no destino, mas em percorrer o caminho. Da melhor forma possível. Se não há o bem, se não há um sentido dado, é preciso criá-los ou escolhê-los a cada passo.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Prazeres e dores do parto da consciência

Emoção, "e-motio": mover para fora. A raiz latina denota o fim. No fim da emoção, a ação. Na origem de toda ação, uma emoção. No fim, ou no princípio, agimos por emoção. Animais racionais? Não. Animais apenas, e, como tal, emocionais.

A raiz da palavra denota o seu fim, eu dizia, mas omite o seu início, afirmo. O primeiro movimento é interno. É um mover para dentro, ou por dentro. E ocorre no cérebro mais animal, no sistema límbico. Cérebro: caldeirão mágico da criação de mundos ou simples panela de pressão de hormônios? Idéias e ações, o que há de mais humano ou divino no homem, para um materialista não passa de agitação hormonal, aquecimento da sopa de hormônios a excitar células. A emoção prepara a ação. A ação humana e toda a ética, no final, resultam da adrenalina.

A emoção é o próprio "prazer em movimento" cirenaico. Sem emoção, não há solução. Porque, simplesmente, sem emoção não há problema a exigi-la. Sem emoção não há problema nem solução, não há dor nem prazer, não há falta nem plenitude. Desejo é falta, dizia Platão. Para suprir esta carência imensa criamos mundos, compusemos sinfonias e odes, desenvolvemos matemáticas e linguagens, fizemos guerras e construímos armas, destruímos a Terra e a reconstruímos.

Prazer sim, mas "em repouso", contestaria Epicuro. Prazer estável, ausência de dor: "ataraxia". Sem, inclusive, a dor do desejo: carência, ardência, esse prazer "em movimento" que produz no homem idéias (objetos de desejo) e o move no seu sentido. Ausência de dor: literalmente, indolência. Indolente, no dicionário: inativo. Epicuro que me perdoe, e com ele Buda e os estóicos, mas essa sabedoria de enterrar-se no presente e bastar-se é o que chamo de "sabedoria de abóbora": niilismo. Como se esforço significasse dor, ou melhor, como se dor fosse sinônimo de mal.

Ora, o prazer em movimento sempre se acompanha da dor. O prazer em repouso, que seria plenitude, é a plenitude do vazio, do nada: nada desejar ou esperar do futuro, nada lamentar ou recordar do passado e, nem mesmo, apegar-se ao presente fugidio. Desfrutar sem apego? Não! Desfrutar com moderação, "sofrosyne". Virtude do meio termo entre vício do excesso (sofreguidão) e o vício da falta (insensibilidade). Há que cuidar o equilíbrio. Que se perde quando buscado. Em materia de equilíbrio, se todo cuidado é pouco, muito cuidado é demais.

Desejo de desfrutar que surge como dor, sentimento de falta. Falta que engendra a ideação de um objeto que preencha esse vazio. Fruição (ou dor) antecipada e virtual da idéia: esperança ou medo, mas sempre fantasia. Desejo de prazer sempre acompanhado de seu fantasma: o medo da dor. Duplos necessários, basta evocar um para que surja o outro. Qual o nome desta dupla fantasmagoria? Eu vos digo ou vos desvelo: seu nome é emoção. Emoção criada pelo próprio sujeito, no processo de ideação. Criação do intelecto pelo intelecto, E, na origem, a emoção. Em movimento, sempre. Prazer e dor, dois nomes para a emoção. Necessariamente complementares. Eros cria Tanatos, Tanatos engendra Eros. Gêmeos univitelinos cujo parto dá luz a um filho com vários nomes: intelecto, consciência, alma, razão. Ao longo do processo a fusão dos opostos confunde, a escolha do sentimento se impõe, a complementariedade se perde e a emoção se elabora num significado. Gêmeos fratricidas. só a um é dada a luz da consciência. O outro fica lá, espectro fetal de uma idéia abocanhada pelo irmão. Inconsciente: casa assombrada dos gêmeos natimortos. Consciência: palco iluminado de idéias mutiladas, órfãs de suas irmãs cuja existência teimam em desconhecer.

Tudo então, afirmo, começa com a energia propiciada pelo estresse. (E há quem não goste dele!) A questão é: como dirigi-la, ou canalizá-la. Isso requer compreensão e método. Resposta natural com uma causa ou criação original de uma vontade? Causa de si mesma, autonomia, ou efeito inexorável do acaso ou da intenção alheia?