Leio em reportagem de ZH sobre a corrupção na polícia a sentença do jornalista Carlos Etchichury: “são as carências das polícias que abrem margem para a corrupção”. A princípio tende-se a concordar com o raciocínio meridiano, que, aliás, é o mesmo usado pelo Judiciário para justificar altos salários, construções opulentas e mordomias especiais. Isso me lembrou máxima que cunhei há anos ao orientar orçamentos empresariais: “o problema não está na escassez dos recursos, mas na inflação dos desejos”. Onde se situa o limite do desejo para que não cause a sensação de carência? Aí é que está: carência é um “sentimento” ´de dor e infelicidade que resulta da insatisfação de alguma necessidade. Mas qual necessidade?
Epicuro classificava os desejos em três categorias, conforme a natureza e a necessidade e aconselhava a maneira sábia de lidar com eles. Os desejos naturais e necessários (alimento, sono) precisam ser buscados e realizados. Os desejos naturais e não necessários (a boa mesa, a música, o sexo) devem ser desfrutados na justa medida, sem apego demasiado. Os desejos não naturais e nem necessários (a acumulação de dinheiro, os vícios) devem ser evitados. Para Epicuro, não existiam desejos necessários e não naturais. Ele não viveu numa sociedade tecnológica onde o possível rapidamente se torna necessário. Parece que ninguém consegue viver hoje sem celular, automóvel e Internet. Ou melhor, uma vida sem essas facilidades tecnológicas parece insuficiente. Mas devemos usar a tecnologia sem nos deixarmos usar por ela.Então, ouso expandir os conselhos de Epicuro, dizendo que as coisas necessárias e não naturais devem ser usadas sem apego e sem subserviência e proponho a seguinte Matriz dos Desejos.
Quanto à corrupção da polícia, ela se justificaria, segundo o jornalista, pela carência de veículos e salários. Veículos vá lá, mas quanto aos salários cabe indagar: qual o salário necessário para saciar o desejo pelo supérfluo e pela acumulação ostentatória? Para um caráter fraco, que se avalia pelo ter, esse limite é dados pelas posses do outro. Os policiais olham para os juízes que olham para os deputados, que olham para os empresários mais abastados, que olham para os milionários, que olham uns para os outros. A inveja do ter é a mola negativa da competição. O orgulho de ser é a sua mola positiva. Nossa sociedade não é apenas mais tecnológica do que a sociedade grega dos tempos de Epicuro. Ela também é mais competitiva. Para o bem ou para o mal.
domingo, 24 de abril de 2011
segunda-feira, 4 de abril de 2011
Quatro aspectos da Liberdade na Internet
Liberdade e Identidade
Os meios eletrônicos, em tese, permitem controle absoluto. Entretanto, a Internet foi administrada até hoje sob a égide da liberdade. Principalmente porque nela a identidade é apenas declaratória e não requer comprovação. Eu posso declarar ser o Pato Donald com endereço na Disneylândia e ninguém tem a obrigação de verificar a veracidade da minha afirmação. Isso garante a privacidade e a liberdade de expressão, evitando a censura e o controle. Em contrapartida, esse anonimato facilita a ação ilícita e dificulta a localização dos perpetradores para desespero de policiais, juízes e autoridades ao redor do mundo. Ademais, toda autoridade no mundo real tem jurisdição e a Internet não tem fronteiras. Pode-se conversar com ou cometer crimes no outro lado do mundo.
O delicado equilíbrio entre liberdade e controle na Internet tem um tom mais liberal pela ação da ICANN (Internet Corporation for Assigned Numbers and Names). A forma de identificação que permite o endereçamento e a troca de informações na Internet é o Sistema de Nomes de Domínios (DNS) acoplado ao endereçamento IP. A administração deste sistema foi delegada à ICANN no governo Clinton. A ICANN é uma empresa sem fins lucrativos, organizada sob as leis da Califórnia, com um sistema de gestão "bottom up, multistakeholder, private sector led", razoavelmente internacionalizado e relativamente independente. O modelo de governança multi-setorial (academia, setor privado, governo e terceiro setor) inspirou inclusive a criação do CGI.br.
Alguns governos querem colocar as funções da ICANN sob o controle da UIT, um órgão da ONU. Embora ainda esteja um pouco sob a égide dos EUA, a tendência refletida na estrutura da ICANN é de uma entidade independente, sem subordinação a nenhum país, o que é muito diferente de estar subordinada a todos os países (e seus governos). O único órgão de decisão na ICANN é o Board, composto por voluntários indicados pelas Organizações de Suporte, Comitês de Assessoramento e pelo Comitê de Nomeação, respeitando critérios de conhecimento bem como de diversidade, tanto geográfica quanto de gênero. As três SOs "Supporting Organizations" são: GNSO ("Generic Names"), ccNSO ("Country Codes") e ASO ("Address"). Elas formulam as propostas de políticas nas áreas fim da ICANN: nomes de domínios (genéricos ou de países) e endereços IP, respectivamente. Na ICANN os governos têm o mesmo status que o terceiro setor e apenas com função de aconselhamento através do GAC (Government Advisory Committee) e do ALAC (At Large Advisory Committee), respectivamente. Obviamente, os governos não gostam desta falta de poder. Há outros dois Comitês de Assessoramento mais técnicos: RSSAC (Root Servers Advisory Committee) e SSAC (Security and Stability Advisory Committee).
Diversas forças dentro da ICANN querem imputar às empresas registradoras a obrigação de identificação final dos registrantes de domínios. Embora alguns cuidados maiores possam e devam ser tomados para dificultar a ação criminosa, o requisito de validação de identidade pelo registrador equivaleria a decretar a censura na Internet.
Na questão da identificação a ICANN tem feito um bom trabalho de governança, mas há outras ameaças à liberdade na Internet que ultrapassam sua esfera de atuação. A mais premente, talvez, seja a questão da neutralidade.
Liberdade e Neutralidade
Por falta de jurisdição os governos não têm tanto poder na Internet. Não se pode dizer o mesmo das empresas que fornecem acesso ou plataformas colaborativas.
O CGI.br formulou dez Princípios para a Governança da Internet . O princípio da neutralidade reza: “Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”. Ou, nas palavras do conselheiro Carlos Afonso, “todos os bits são iguais perante a rede”.
A qualidade do serviço pode ser percebida pelo tempo de resposta, mas como é razoável uma certa variação, o usuário não tem meios para comprovar ou verificar a qualidade que lhe está sendo oferecido. É razoável as empresas fornecerem distintos graus de serviço a diferentes preços. Por motivos técnicos, o tráfego de aplicações em tempo real também é privilegiado. Porém, não é aceitável que o tempo de resposta obedeça a critérios comerciais do fornecedor, para favorecer parceiros ou prejudicar concorrentes, por exemplo, sem o conhecimento nem o consentimento do usuário. Não é aceitável, mas é praticado. Aqui a fiscalização por autoridades governamentais se impõe, embora seja dificultada pela questão da jurisdição.
Da mesma forma não é aceitável que os governos bloqueiem ou filtrem determinados tipos de tráfego por motivos políticos ou religiosos e isso também é praticado, como eventualmente ocorreu no Egito, e sistematicamente ocorre no Iran e na China. Embora qualquer bloqueio na Internet possa ser burlado, essa prática deteriora radicalmente a qualidade do acesso a determinados conteúdos. É importante que se reafirme que a fiscalização do grau de serviço não é uma atribuição da ICANN.
Liberdade e Privacidade
Outro abuso de poder das empresas ocorre muitas vezes com a conivência relativamente inocente do usuário. Ferramentas de “data mining” analisam suas preferências de navegação para oferecer facilidades de navegação, atalhos, formatos de telas, produtos e serviços talhados ao seu gosto. Em nome da economia de tempo e da melhoria da experiência digital as informações do usuário são guardadas e utilizadas, muitas vezes com o seu consentimento, mas às vezes sem o seu conhecimento. Por trás disso há um processo de engenharia social com consequências assustadoras. Um executivo da Google mencionou que seus dados permitiriam prever a probabilidade de separação de um casal antes mesmo que qualquer um dos dois reconhecesse qualquer incompatibilidade.
Independentemente do consentimento ou não do usuário, há aí uma interferência no fluxo de dados que não obedece apenas a critérios técnicos e que limita ou molda a experiência de navegação, afetando a neutralidade da rede. Mas o mais grave é a guarda de um banco de dados privados que pode ser acessado devida ou indevidamente por terceiros. Na Europa, principalmente, mas também nos EUA e no Brasil, discute-se regular os limites para essa prática.
Liberdade e Interoperabilidade
A Internet só se tornou um espaço de colaboração livre porque o desenvolvimento do seu núcleo se baseou em padrões abertos, que permitiram a interoperabilidade de distintas redes e equipamentos e a participação de todos em seu aprimoramento contínuo. Mas, nas palavras de Jaron Lanier [1] “arquiteturas de redes digitais naturalmente incubam monopólios”. O “efeito rede” onde cada elemento do sistema (máquina, pessoa ou estrutura de dados) passa a depender da aderência a um mesmo padrão é buscado incessantemente por empresas que querem estabelecer o seu diferencial competitivo. Criam-se assim ilhas de padrões proprietários que impedem a livre migração dos usuários de uma plataforma para outra.
O interessante é que o próprio usuário contribui para o seu aprisionamento, pois essa “reserva de mercado” é potencializada pelo fenômeno “free”. Embora os protocolos ou algoritmos básicos de uma plataforma sejam proprietários, cria-se uma camada de plugins gratuitos que permitem o desenvolvimento de ferramentas sobre ela. No modelo “free” típico não é preciso pagar nada pelo uso da plataforma ou para desenvolver aplicativos e ferramentas para ela. Assim o custo dessas ferramentas para o usuário também é reduzido ou zerado, porque o seu maior agregado de valor não é necessariamente a excelência técnica, mas sim o tamanho da legião dos seus consumidores e do número de agregados desenvolvidos em cima dela por parceiros, um fator puxando o outro num fenômeno de realimentação positiva. Essa legião de usuários não só se constitui em barreira de entrada a possíveis competidores, como também em uma “audiência” que transforma esta plataforma tecnológica em uma mídia, onde o que se vende é o usuário e não o serviço. Assim, serviços “gratuitos” de grande utilidade atraem milhões de usuários que são “vendidos” a grandes e pequenos anunciantes.
Conclusão
Seja por governos (legítimos ou não) seja por empresas (éticas ou não) a liberdade na Internet é constantemente ameaçada. É importante que se busque a consolidação e a legitimidade do modelo de governança multi-setorial em que o governo não tem mais o papel primordial. Talvez o terceiro setor, representando o usuário, seja o grande protagonista nesta nova ordem, mas sua legitimidade ainda é questionável. O modelo da ICANN é a primeira experiência, mas cobre apenas o DNS e a questão da identidade.
Discute-se no IGF (Internet Governance Forum) o futuro modelo para a governança da Internet. Uma corrente, representada principalmente por governos, deseja um modelo multi-lateral de internacionalização, nos moldes da ONU. Outra corrente, constituída basicamente pelos outros setores (setor privado, academia e terceiro setor) busca estender o modelo multi-setorial. Entretanto, as discussões têm escorregado pelas boas e más intenções, sem resultados concretos até agora.
O governo brasileiro teve grandeza de visão ao deixar a administração do registro.br a cargo de uma entidade civil sem fins lucrativos: o NIC.br. A Assembleia Geral do NIC é constituída pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), que, por sua vez, é reconhecido por Decreto Presidencial como órgão de assessoramento do governo para todas as questões relativas à Internet. O CGI tem 21 conselheiros com maioria de representação da sociedade civil de 11 membros eleitos pelos respectivos setores (3 da academia, 4 do terceiro setor e 4 da iniciativa privada), 9 membros são indicados por órgãos do governo e o Presidente do NIC.br é um membro independente.
A área de influência do CGI.br não se restringe ao domínio .br, mas nas outras áreas seu papel é de aconselhamento. Portanto, seu escopo excede aquele da ICANN, que lhe serviu de modelo. Por isso, o CGI teve a iniciativa inédita em termos mundiais de elaborar uma Carta de Princípios para a Governança da Internet, que está servindo de modelo a outros países e que pode ser um caminho para o IGF.
[1] Lanier, Jaron. "You Are Not a Gadget". New York, Alfred Knopf e-book, 2010.
Os meios eletrônicos, em tese, permitem controle absoluto. Entretanto, a Internet foi administrada até hoje sob a égide da liberdade. Principalmente porque nela a identidade é apenas declaratória e não requer comprovação. Eu posso declarar ser o Pato Donald com endereço na Disneylândia e ninguém tem a obrigação de verificar a veracidade da minha afirmação. Isso garante a privacidade e a liberdade de expressão, evitando a censura e o controle. Em contrapartida, esse anonimato facilita a ação ilícita e dificulta a localização dos perpetradores para desespero de policiais, juízes e autoridades ao redor do mundo. Ademais, toda autoridade no mundo real tem jurisdição e a Internet não tem fronteiras. Pode-se conversar com ou cometer crimes no outro lado do mundo.
O delicado equilíbrio entre liberdade e controle na Internet tem um tom mais liberal pela ação da ICANN (Internet Corporation for Assigned Numbers and Names). A forma de identificação que permite o endereçamento e a troca de informações na Internet é o Sistema de Nomes de Domínios (DNS) acoplado ao endereçamento IP. A administração deste sistema foi delegada à ICANN no governo Clinton. A ICANN é uma empresa sem fins lucrativos, organizada sob as leis da Califórnia, com um sistema de gestão "bottom up, multistakeholder, private sector led", razoavelmente internacionalizado e relativamente independente. O modelo de governança multi-setorial (academia, setor privado, governo e terceiro setor) inspirou inclusive a criação do CGI.br.
Alguns governos querem colocar as funções da ICANN sob o controle da UIT, um órgão da ONU. Embora ainda esteja um pouco sob a égide dos EUA, a tendência refletida na estrutura da ICANN é de uma entidade independente, sem subordinação a nenhum país, o que é muito diferente de estar subordinada a todos os países (e seus governos). O único órgão de decisão na ICANN é o Board, composto por voluntários indicados pelas Organizações de Suporte, Comitês de Assessoramento e pelo Comitê de Nomeação, respeitando critérios de conhecimento bem como de diversidade, tanto geográfica quanto de gênero. As três SOs "Supporting Organizations" são: GNSO ("Generic Names"), ccNSO ("Country Codes") e ASO ("Address"). Elas formulam as propostas de políticas nas áreas fim da ICANN: nomes de domínios (genéricos ou de países) e endereços IP, respectivamente. Na ICANN os governos têm o mesmo status que o terceiro setor e apenas com função de aconselhamento através do GAC (Government Advisory Committee) e do ALAC (At Large Advisory Committee), respectivamente. Obviamente, os governos não gostam desta falta de poder. Há outros dois Comitês de Assessoramento mais técnicos: RSSAC (Root Servers Advisory Committee) e SSAC (Security and Stability Advisory Committee).
Diversas forças dentro da ICANN querem imputar às empresas registradoras a obrigação de identificação final dos registrantes de domínios. Embora alguns cuidados maiores possam e devam ser tomados para dificultar a ação criminosa, o requisito de validação de identidade pelo registrador equivaleria a decretar a censura na Internet.
Na questão da identificação a ICANN tem feito um bom trabalho de governança, mas há outras ameaças à liberdade na Internet que ultrapassam sua esfera de atuação. A mais premente, talvez, seja a questão da neutralidade.
Liberdade e Neutralidade
Por falta de jurisdição os governos não têm tanto poder na Internet. Não se pode dizer o mesmo das empresas que fornecem acesso ou plataformas colaborativas.
O CGI.br formulou dez Princípios para a Governança da Internet . O princípio da neutralidade reza: “Filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”. Ou, nas palavras do conselheiro Carlos Afonso, “todos os bits são iguais perante a rede”.
A qualidade do serviço pode ser percebida pelo tempo de resposta, mas como é razoável uma certa variação, o usuário não tem meios para comprovar ou verificar a qualidade que lhe está sendo oferecido. É razoável as empresas fornecerem distintos graus de serviço a diferentes preços. Por motivos técnicos, o tráfego de aplicações em tempo real também é privilegiado. Porém, não é aceitável que o tempo de resposta obedeça a critérios comerciais do fornecedor, para favorecer parceiros ou prejudicar concorrentes, por exemplo, sem o conhecimento nem o consentimento do usuário. Não é aceitável, mas é praticado. Aqui a fiscalização por autoridades governamentais se impõe, embora seja dificultada pela questão da jurisdição.
Da mesma forma não é aceitável que os governos bloqueiem ou filtrem determinados tipos de tráfego por motivos políticos ou religiosos e isso também é praticado, como eventualmente ocorreu no Egito, e sistematicamente ocorre no Iran e na China. Embora qualquer bloqueio na Internet possa ser burlado, essa prática deteriora radicalmente a qualidade do acesso a determinados conteúdos. É importante que se reafirme que a fiscalização do grau de serviço não é uma atribuição da ICANN.
Liberdade e Privacidade
Outro abuso de poder das empresas ocorre muitas vezes com a conivência relativamente inocente do usuário. Ferramentas de “data mining” analisam suas preferências de navegação para oferecer facilidades de navegação, atalhos, formatos de telas, produtos e serviços talhados ao seu gosto. Em nome da economia de tempo e da melhoria da experiência digital as informações do usuário são guardadas e utilizadas, muitas vezes com o seu consentimento, mas às vezes sem o seu conhecimento. Por trás disso há um processo de engenharia social com consequências assustadoras. Um executivo da Google mencionou que seus dados permitiriam prever a probabilidade de separação de um casal antes mesmo que qualquer um dos dois reconhecesse qualquer incompatibilidade.
Independentemente do consentimento ou não do usuário, há aí uma interferência no fluxo de dados que não obedece apenas a critérios técnicos e que limita ou molda a experiência de navegação, afetando a neutralidade da rede. Mas o mais grave é a guarda de um banco de dados privados que pode ser acessado devida ou indevidamente por terceiros. Na Europa, principalmente, mas também nos EUA e no Brasil, discute-se regular os limites para essa prática.
Liberdade e Interoperabilidade
A Internet só se tornou um espaço de colaboração livre porque o desenvolvimento do seu núcleo se baseou em padrões abertos, que permitiram a interoperabilidade de distintas redes e equipamentos e a participação de todos em seu aprimoramento contínuo. Mas, nas palavras de Jaron Lanier [1] “arquiteturas de redes digitais naturalmente incubam monopólios”. O “efeito rede” onde cada elemento do sistema (máquina, pessoa ou estrutura de dados) passa a depender da aderência a um mesmo padrão é buscado incessantemente por empresas que querem estabelecer o seu diferencial competitivo. Criam-se assim ilhas de padrões proprietários que impedem a livre migração dos usuários de uma plataforma para outra.
O interessante é que o próprio usuário contribui para o seu aprisionamento, pois essa “reserva de mercado” é potencializada pelo fenômeno “free”. Embora os protocolos ou algoritmos básicos de uma plataforma sejam proprietários, cria-se uma camada de plugins gratuitos que permitem o desenvolvimento de ferramentas sobre ela. No modelo “free” típico não é preciso pagar nada pelo uso da plataforma ou para desenvolver aplicativos e ferramentas para ela. Assim o custo dessas ferramentas para o usuário também é reduzido ou zerado, porque o seu maior agregado de valor não é necessariamente a excelência técnica, mas sim o tamanho da legião dos seus consumidores e do número de agregados desenvolvidos em cima dela por parceiros, um fator puxando o outro num fenômeno de realimentação positiva. Essa legião de usuários não só se constitui em barreira de entrada a possíveis competidores, como também em uma “audiência” que transforma esta plataforma tecnológica em uma mídia, onde o que se vende é o usuário e não o serviço. Assim, serviços “gratuitos” de grande utilidade atraem milhões de usuários que são “vendidos” a grandes e pequenos anunciantes.
Conclusão
Seja por governos (legítimos ou não) seja por empresas (éticas ou não) a liberdade na Internet é constantemente ameaçada. É importante que se busque a consolidação e a legitimidade do modelo de governança multi-setorial em que o governo não tem mais o papel primordial. Talvez o terceiro setor, representando o usuário, seja o grande protagonista nesta nova ordem, mas sua legitimidade ainda é questionável. O modelo da ICANN é a primeira experiência, mas cobre apenas o DNS e a questão da identidade.
Discute-se no IGF (Internet Governance Forum) o futuro modelo para a governança da Internet. Uma corrente, representada principalmente por governos, deseja um modelo multi-lateral de internacionalização, nos moldes da ONU. Outra corrente, constituída basicamente pelos outros setores (setor privado, academia e terceiro setor) busca estender o modelo multi-setorial. Entretanto, as discussões têm escorregado pelas boas e más intenções, sem resultados concretos até agora.
O governo brasileiro teve grandeza de visão ao deixar a administração do registro.br a cargo de uma entidade civil sem fins lucrativos: o NIC.br. A Assembleia Geral do NIC é constituída pelo CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), que, por sua vez, é reconhecido por Decreto Presidencial como órgão de assessoramento do governo para todas as questões relativas à Internet. O CGI tem 21 conselheiros com maioria de representação da sociedade civil de 11 membros eleitos pelos respectivos setores (3 da academia, 4 do terceiro setor e 4 da iniciativa privada), 9 membros são indicados por órgãos do governo e o Presidente do NIC.br é um membro independente.
A área de influência do CGI.br não se restringe ao domínio .br, mas nas outras áreas seu papel é de aconselhamento. Portanto, seu escopo excede aquele da ICANN, que lhe serviu de modelo. Por isso, o CGI teve a iniciativa inédita em termos mundiais de elaborar uma Carta de Princípios para a Governança da Internet, que está servindo de modelo a outros países e que pode ser um caminho para o IGF.
[1] Lanier, Jaron. "You Are Not a Gadget". New York, Alfred Knopf e-book, 2010.
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