Não sou um “mestre do tempo”, mas sim um típico “doente do tempo”. A doença do tempo tem três sintomas: a “falta de tempo”, o medo de “perder tempo” e, o pior de todos, “o excesso de tempo”.
A doença do tempo é uma doença moderna. A produtividade do trabalho aumentou, mas paradoxalmente, as pessoas têm cada vez menos tempo para si mesmas, para se acalentarem e ordenar os pensamentos e sentimentos. Não se trata de figura de retórica. Angústia, ansiedade, fadiga, depressão e estresse excessivo são sintomas orgânicos associados à “doença do tempo”.
Falta tempo e os dias são curtos porque não se consegue dar conta de tantas demandas. Entretanto, convém notar que a força destas demandas reside no fato de serem aceitas. Sempre ocupados, e com medo de “perder tempo”, todos se queixam da falta de tempo, mas não conseguem suportar o tempo livre, ocupando-o com qualquer atividade, ansiosamente. Na sociedade ocidental moderna, produtiva e pragmática, quem não está fazendo alguma coisa, quem está “parado”, só pensando, é um desocupado, um inútil, sem valor. O ócio, que na Grécia antiga era a virtude dos que se dedicavam à contemplação, na ética cristã do trabalho tornou-se o pecado dos indolentes.
Ocupamo-nos para não enfrentar nossa finitude – por medo da morte. Para evitar a consciência de que estamos morrendo um pouco a cada minuto vivido. De que o tempo que passa é um tempo que morreu. Não perder tempo para agarrar-se à vida. Agarrar-se ao presente sem olhar para o longo prazo porque “no longo prazo todos estaremos mortos”, como disse Keynes. Mas é ao aceitar a morte, que se aprende a viver com serenidade. Aprender a viver é aprender a morrer.
Vive-se na urgência, sem tempo para questionamentos mais profundos sobre o sentido da vida, sobre o que se quer no longo prazo. Mas é justamente quando as pessoas se fazem estas questões que o uso do tempo deixa de ser urgente para se tornar vital. Sem tempo livre para pensar e formar juízos, a vida se torna uma seqüência de reações condicionadas e instantâneas às demandas, apelos e ilusões. Perde-se o rumo, e a vida perde o sentido e, jogados de um lado para outro ao sabor das circunstâncias, fica-se “doente do tempo”.
O importante é fazer o que se gosta. Todo mundo gosta de ter prazer: amar, divertir-se. Também é bom, pelo menos por um tempo, simplesmente não fazer nada, deixar o tempo passar. Alguns, ainda, gostam de aprender, enfrentar dificuldades, realizar metas. Por isso, há sempre a alternativa de gostar do que se faz. Aceitar os encargos como missão, assumi-los plenamente. O certo é que, quando se está fazendo algo de que se gosta, estar ocupado é uma bênção. O envolvimento é pleno e total. O problema é o conflito que, muitas vezes, se estabelece entre a pessoa e seus papéis, seus valores e sua missão.
Em um mundo cada vez mais populoso e com recursos limitados, a produtividade é um imperativo e não mais uma opção. Urge produzir. Queira-se ou não, o valor fundamental da vida moderna é a utilidade, em detrimento da verdade, da beleza, da justiça ou da santidade, que já predominaram em outras épocas da civilização. Não se pode mais parar e o trabalho econômico é a principal finalidade da vida, fonte básica de valor e da auto-estima que fundamenta a identidade de cada um. A sociedade de consumo nos martela com uma mensagem fundamentalmente hedonista: o objetivo da vida é poder consumir, felicidade é prazer – e o prazer se compra. Mas o preço do consumo é a produção. É preciso engajar-se no processo produtivo para ganhar o dinheiro para poder consumir e viver. O trabalho é o preço do consumo. O dever de produzir é o preço do prazer de consumir. No mercado de consumo, o homem vira mercadoria e a pessoa vale o que ganha. Mas também há uma vertente da ética moralista a estimular o engajamento produtivo. Na esteira do estoicismo, a mensagem utilitarista defende que o dever de produzir se impõe por si só como dever moral e ético: a pessoa vale o que produz, não o que ganha. Está aí o líder servidor. Daí a noção de tempo como mais um recurso econômico. E, como todo recurso econômico tem seu valor de troca medido em dinheiro, confunde-se tempo com dinheiro, a grande psicopatia coletiva da nossa sociedade.
Entretanto, o pior sintoma da doença do tempo, o “excesso de tempo”, não é excesso de dinheiro, embora seja sim conseqüência das desigualdades econômicas. Em termos de valor econômico, os indivíduos e as sociedades não são iguais em suas possibilidades e se distinguem em pelo menos dois aspectos: dons inatos e possibilidade de acesso a recursos. Tenho um enunciado para a Lei da Gravidade da Riqueza: “O dinheiro atrai o dinheiro na razão direta da carência e na razão inversa do quadrado do medo. Geralmente, os que têm mais riqueza, têm mais produtividade na geração de riqueza. Isto é um fato, por injusto que seja. Com a produtividade crescente, o padrão de vida médio cresce exponencialmente, porém, o padrão de vida maior cresce mais do que o padrão de vida menor. Este fenômeno é efeito da divisão do trabalho e, embora seja mais agudo nas economias de mercado, também acontece nas economias planificadas ou mistas, conseqüência das diferenças de produtividade entre indivíduos e grupos. Assim, embora a qualidade de vida média cresça com o aumento da produtividade global, a desigualdade também aumenta de forma exponencial. Produz-se mais, mas os resultados da produtividade são distribuídos de forma cada vez mais desigual. Assisti uma palestra de Paul Kennedy na qual ele cita um relato hipotético de uma nave alienígena na órbita da Terra reportando inúmeras formas de vida e indicando um fato estranho a respeito de uma delas: a enorme diferença de padrão de vida entre os indivíduos daquela espécie em diferentes partes do globo, enquanto as demais espécies não apresentavam tanta desigualdade. Este aumento progressivo da desigualdade está na raiz da outra característica da sociedade moderna – a competitividade. A chave para o crescimento e o desenvolvimento está no aumento de produtividade ligado ao conhecimento e ao domínio tecnológico. A tendência de distanciamento entre os mais e os menos desenvolvidos ocorre tanto no plano das pessoas, quanto no dos grupos sociais e das nações. Alguns têm mais o que fazer, ou sabem mais o que fazer do que outros. Por exemplo, hoje em dia, quem não sabe operar um computador tem mais dificuldade, não só de encontrar emprego, mas também de ter acesso ao enorme cabedal de informação e de relacionamento disponível na Internet. Atualmente, a produtividade dos que produzem é tanta que bastaria à subsistência de todos. Entretanto, na economia de mercado, a produção se orienta para o consumo de quem produz. Pessoas que não tenham uma educação mais aprimorada, que fazem serviços de rotina, são cada vez menos necessárias, pois realizam tarefas automáticas e repetitivas, substituíveis por máquinas. O fenômeno da exclusão se acelera. Uma parcela cada vez maior da população simplesmente não precisa se educar nem produzir, e subsiste à margem do sistema, vivendo das sobras, da caridade ou do assalto violento ao processo econômico central. De uma forma que é ao mesmo tempo lógica, natural e paradoxal, os que vivem à margem consomem sem produzir, têm excesso de tempo, e assumem o papel de adoradores impotentes e revoltados da vertigem de consumo que comanda este processo.
É interessante como o tempo também se distribui de forma desigual. No centro do processo produtivo falta tempo. Na margem, ele sobra. A analogia geométrica que aqui se faz baseia-se na figura de Alvin Toffler [1] das ondas da economia. No centro do processo situam-se as economias que já chegaram à terceira onda (economia pós-industrial, economia de serviços baseada nas tecnologias da informação); as economias de segunda onda (industriais) estariam numa camada mais externa; as da primeira onda (agrícolas), numa outra mais externa ainda, e o entorno do processo econômico seria ocupado pelos excluídos (economias primitivas). Nesse sentido, a África é mais “marginal” – seu processo econômico está mais distante da terceira onda – do que a América do Sul, e o interior é mais “marginal” do que a cidade. Mas, a analogia geométrica proposta não obedece aos contornos da geografia. Num mesmo país, e até numa mesma cidade, as quatro camadas (ou ondas) coexistem.
O custo subjetivo do aumento da produtividade e da competitividade, o aumento da ansiedade – “o medo de perder tempo” – a pressão da “falta de tempo”, recai exatamente sobre os que produzem. E esta pressão é tão maior quanto mais próximo do centro do processo; nos EUA, mais do que no Brasil; em São Paulo, mais do que em Porto Alegre; em Porto Alegre, mais do que em Alegrete. Porque a cada onda, o processo produtivo se acelera e a competição aumenta. Os profissionais mais qualificados tendem a migrar para os centros do processo, aguçando a competição. Para o centro do processo converge também a acumulação de capital e, complementando a lógica do sistema, o aumento do consumo funciona como uma compensação psicológica para a pressão competitiva.
Entretanto, há uma dor psicológica dupla que acomete os que estão à margem ou nas camadas mais exteriores do processo, dor essa que resulta da comparação com o centro. Ao gerar menos renda na cada camada mais externa as pessoas sentem-se, comparativamente, “piores”. Ao consumir menos, alguns chegam a experimentar privação e carência do supérfluo, mas todos sentem inveja de quem tem mais e de quem faz mais. Marx[2] já notava este fenômeno. Nessa situação, o indivíduo se depara com outro sintoma (o mais doloroso) da doença do tempo: o “excesso de tempo” – o não ter o que fazer no seu nível de qualificação e não saber fazer outra coisa. É aí que a vida perde todo sentido e que a pessoa passa a duvidar do seu próprio valor. Sente-se à beira do abismo, em crise. O tempo e o conhecimento são irreversíveis, e na beira do abismo, só se tem três alternativas: paralisar-se, cair, ou aprender a voar. Aprender a voar é o próprio aprendizado: ir além das suas possibilidades atuais.
Incluo-me no rol dos doentes do tempo, pois padeço ou padeci de todos os três sintomas desta doença. Julgo-me, porém, um doente consciente, que não nega a doença e busca o remédio. Infelizmente, não existe o remédio milagroso. Não basta ler um livro como este, fazer um curso, consultar um terapeuta ou comprar um sistema de planejamento pessoal para conseguir a cura. Tudo isto ajuda, mas a doença precisa ser combatida todos os dias, de forma homeopática, pelo cultivo de bons hábitos de tempo e de vida, revigorando-se a cada dia, porque as recaídas são praticamente inevitáveis.
[1] Toffler, Alvin. A Terceira Onda. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 1980.
[2] Marx, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.74. “O rápido crescimento do capital produtivo demanda o crescimento rápido da riqueza, da ostentação e das satisfações sociais. Por isto, mesmo que as satisfações do trabalhador tenham aumentado, a gratificação social que proporcionam diminuiu em comparação [grifo meu] com o aumento das satisfações do capitalista, inacessíveis ao trabalhador. As nossas carências e satisfações têm origem na sociedade; podemos medi-las portanto em relação à sociedade; não as avaliamos em relação aos objetos que servem para a sua satisfação. Possuem uma característica relativa.”
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