O que é demais é muito e o que é pouco falta. Haverá algo que escape a essa lei?
Talvez a dor, a maldade e a desgraça pudessem sumir sem deixar saudade. Será? “Desgraça pouca é bobagem”, obviamente, é uma blague para reforçar o ânimo. Mas a vida no Éden seria mesmo tão boa? Adão e Eva eram felizes ou idiotas? A felicidade do desfrute do bem abundante ensina alguma coisa? Ou a tragédia humana é exatamente a sua grandeza: constatar que o mal e a dor são inevitáveis, e persistir. Mas não é exatamente porque o bem e o prazer são raros, que escolher um e desfrutar o outro é sublime? A eterna (porque seu fim é impossível) busca do melhor em nós – não é a essência do crescimento e da sabedoria? Por que o fim é impossível? Porque há que reconhecer que o acaso não nos prefere a nada, que Deus, se existe, é indiferente. Porque há que reconhecer que a fonte de toda maldade é esse amor próprio, essa preferência pelo próximo em detrimento do distante, essa luta pela sobrevivência da vida que é a nossa própria essência, e que nos leva a persistir nela. Há que reconhecer que o mal está em nós. Há que reconhecer, enfim, que toda essa luta é vã, porque o fim certo é a morte. Se o fim é impossível, a busca é um fim em si. Reconhecer isso talvez possa nos reconciliar com a dor, a maldade e a desgraça, e aceitá-las como adversárias necessárias. Se a luta é um fim em si, há que agradecer ao inimigo que a possibilita. Busca eterna, luta eterna, eterna tragédia de Sísifo e Atlas. Trata-se de trilhar o caminho mais do que chegar ao destino. De mirar bem, mais do que acertar o alvo. De buscar o equilíbrio e o balanço mais do que a perfeição. Porque perfeição é demais.
E a confiança? Não seria um caso em que o excesso nunca é demais? Confiança: além da esperança e aquém da certeza. Uma potência entre duas impotências. A esperança não age porque espera – é um confiar no além. A certeza não leva à ação, apenas ao movimento e à contemplação. O que resulta da certeza é efeito, não causa – reação de um objeto e não ação de um sujeito. A confiança é que nos leva a agir apesar do risco (aliás, só há confiança se há risco, senão já seria certeza) e a mudar o curso natural das causas e dos efeitos, alterando as probabilidades a nosso favor. Como confiar na sorte, sabendo que a dor é certa? Como confiar no outro sabendo que o mal existe? Entramos no avião confiantes. Ligamos o computador confiantes. Confiança ou esperança? Quantos milhões de promessas precisam ser cumpridas e quantos acidentes precisam não acontecer para que o avião e a Internet funcionem? O tal de Segredo parece ser esse: o que nos acontece depende de nossa atitude interior, que podemos aprender a controlar conscientemente. Basta confiar em si, no cosmos e nos outros que tudo conspira a favor. Ora, isso é a ingenuidade estóica do Logos, que o pensamento moderno desmascarou. A sabedoria dos antigos, embora sábia, era ingênua. Por trás desse pcicologismo entusiamante está uma confiança no poder da consciência que beira a esperança. Confiança em excesso é esperança, é fé, é um pensamento mágico, uma crença acima de toda evidência: loucura, em suma.
Não há salvação. Não há felicidade plena. Esse é o outro segredo. O mais bem guardado, pois ninguém ousa confessar. Até porque não queremos que nossos filhos saibam, pois, apesar de toda evidência, desejamos para eles a felicidade completa. Não há porque desistir de tentar, mesmo sabendo disso. Confiança é exatamente o que nos livra do niilismo cético e da inação diante da dor de saber. Melhor esquecer? Não há porque esconder isso da consciência para confiar. Aliás, a certeza da salvação não é confiança, é fé – a crença contra a evidência. É a desconfiança (a confiança pelo avesso) que nos salva dessa loucura. Então confiança nunca pode ser demais, senão vira esperança. E nunca pode ser de menos, senão vira certeza contemplativa. Não há salvação senão buscar o equilíbrio, sempre instável, sempre tênue, sempre difícil, porque impossível.
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