Chegamos a Sydney às 7h30 de um sábado chuvoso depois de 29 horas de vôo. Somem 13 horas no fuso horário e o correspondente jet lag e me desculparão por não ter assistido à reunião das 9h. Entretanto, das 13h às 18h30 participei da reunião do GNSO e à noite tive um jantar/reunião da ISPCP Constituency. A reunião terminou às 22h, pois arriscávamos afogar de cara no prato de sopa, de tanto sono.
A palavra somem no parágrafo anterior é propositalmente ambígua. Significa tanto "somar" (somem vocês 13 horas a mais) quanto "sumir" - 13 horas sumiram da minha vida. Interessante sensação, parece que me adiantei no tempo. Escrevo agora as 5h30 da manhã de segunda enquanto vocês aí no Brasil ainda estão curtindo o finalzinho do domingo.
É preciso entender a estrutura da ICANN (http://www.icann.org/en/structure/) para compreender os relatos que se seguirão.
O órgão máximo é o Board (Conselho Diretor). Os diretores não são remunerados, nem mesmo o Presidente do Conselho - aliás, isso é uma das discussões em curso. A função executiva remunerada é desempenhada pelo CEO e o pessoal do staff. Nenhum órgão ou função decisória em toda a estrutura é remunerado, mas sim custeado - despesas para viagem e reuniões.
Quem paga a conta são os "Contratados" representados nas SOs "Supporting Organizations": GNSO ("Generic Names"), ccNSO ("Country Codes") e ASO ("Regions"). O grosso do sustento vem dos contratos com os Registries e Registrars (Contratados "contracted parties" - no jargão ICANN), representados na GNSO. Está em curso a reestruturação do Conselho da GNSO dando mais poder aos Contratados numa estrutura bicameral. De um lado ficarão os Contratados e do outro os Usuários (termo que a ICANN não usa). Nesta reunião de Sydney, o Conselho se reúne pela última vez na estrutura anterior. Com mais poder para quem paga a conta, o mercado de registro de domínios tende a crescer. Por isso, o assunto dominante na ICANN é a abertura para novos Domínios Genéricos de Primeiro Nível (gTLDs). Mais adiante.
Poder pode ser grana ou voto. Na governança da Internet, os EUA querem dar poder à grana, o resto do mundo quer dar poder ao voto. Na ICANN, os governos estão representados no GAC (Government Advisory Committee) - uma espécie de ONU. Interessante: a ONU abaixo de um Conselho e no mesmo nível dos Contratados. Obviamente, os governos ficam furibundos. Há briga (diplomática) no GAC e multiplicam-se fóruns para discutir a governança da Internet fora da ICANN, com o intuito de transferir seu poder para a esfera da ONU ou de uma organização multistakeholder mais internacionalizada a ser criada.
A grande novidade do conceito "multistakeholder" é o poder de fiel de balança (entre a grana e o voto) dado ao terceiro setor. Leia-se ONGs ou o jargão "sociedade civil organizada", representada na ICANN através da ALAC (At Large Advisory Committee). O problema aqui é a legitimidade e a força da representação. Surge um novo tipo de "empreendedor sem grana" ou "representante sem voto", que organiza e representa uma causa, um setor, etc. Não deixa de ser uma iniciativa privada, mas o problema é o etc. Por aí corre-se o risco de entrarem interesses ilegítimos. E o fiel da balança pode pender ora para a grana (dinheiro privado) ora para o voto (dinheiro público) [1].
A estrutura se completa com os órgãos mais técnicos: RSSSAC, que reúne os responsáveis pela operação dos servidores da raiz; SSAC, comitê assessor para segurança e estabilidade do sistema DNS. Algumas organizações de caráter técnico existentes à época da constituição da ICANN ganharam representação na sua estrutura. O IETF tem um destaque especial e criou-se um Grupo de Ligação, composto por 4 outras entidades: European Telecommunications Standards Institute (ETSI), International Telecommunications Union's Telecommunication Standardization Sector (ITU-T), World Wide Web Consortium (W3C), e o Internet Architecture Board (IAB).
A IANA (Internet Assigned Names Authority) é uma função da ICANN embora historicamente a preceda. A IANA foi criada para cuidar da base de dados da raiz da Internet e organizar a distribuição de endereços IP. Além dos nomes e IPs, todos os parâmetros dos protocolos Internet são armazenados na IANA. Finalmente, a própria documentação da Internet (os RFC) eram uma função da IANA exercida pessoalmente por Jon Postel. Postel, até 1998, ano de sua morte, confundia-se com a própria IANA.[2]
O Brasil, através dos representantes do governo, participa ativamente no GAC e, através do pessoal do NIC, tem certa liderança no CCNSO. O terceiro setor brasileiro também é muito ativo na ALAC. O setor privado participa através das "constituencies" do GNSO. A representação privada brasileira é mais tímida, pois o setor privado brasileiro como um todo demonstra pouco interesse pelo mercado de registro de domínios. Através do LACNIC o Brasil também tem voz na ASO.
Nivaldo Cleto, Flávio Wagner e eu acompanhamos, nos dois primeiros dias, as reuniões do GNSO. Os assuntos em discussão são os novos gTLDs e a reestruturação do GNSO para a estrutura bicameral. Demi Getschko se juntou a nós no domingo. Aliás, o Demi estava no Board da ICANN até agora, mas seu mandato expirou. O Brasil está sem representante no Board.
Em relação aos gTLDs, foram apresentados estudos que embasarão a terceira revisão do Manual de Qualificação (Applicant Guidebook) para registro de novos gTLDs, cuja edição está prevista para setembro. Os estudos cobrem o que no jargão da ICANN é chamado de "questões globais" ("overarching issues"): Proteção de Marcas; Potencial para Comportamento Ilícito; Escalabilidade da Raiz; Análise de Custos e Benefícios para o Usuário. Se tudo correr como previsto, no fim do ano começarão a ser avaliadas as solicitações de novos domínios de primeiro nível. Hoje são 21 os existentes[3].
Quanto à revisão da estrutura, a reunião foi uma tediosa edição de texto, pois as grandes decisões já haviam sido tomadas e agora se trata de votar o detalhe. Embora digam que é no detalhe que o diabo se esconde, confesso que não consegui enxergá-lo. Talvez por falta de malícia suficiente.
[1] Interpretação liberal. "There is no free lunch", poder se traduz sempre em dinheiro.
[2] Devo este esclarecimento ao Demi
[3] Postei a lista em http://jaime-wagner.blogspot.com/