domingo, 29 de julho de 2007

Mágica

Atenção, surpresa, perplexidade, deslumbramento: quatro momentos da mágica.

Mágico é o inesperado, a ruptura com o previsível, a quebra da monotonia. A rotina está ali, na seqüência indiferente dos dias quando, de repente, um ato ou um fato, por vontade ou acaso, desperta a atenção. Não é mágica ainda. É necessária a surpresa.

Para surpreender, a mágica deve surgir de repente, pois, se é buscada, torna-se ilusão ou fuga. Parece um paradoxo, que uma atenção voluntária possa surpreender. É porque se trata da vontade mágica: aquela que surge sem esforço e sem comando.

Daí vem a perplexidade. No fundo da mágica há sempre um elemento paradoxal: estranheza, contradição, conflito, quebra, separação; no mínimo, dificuldade de entendimento.

Então vem o momento crucial. Após a perplexidade, se não há realidade, sobrevém o desapontamento, ou a desilusão, talvez o sofrimento. Retorno doloroso à realidade, ou fuga definitiva para a loucura, o pensamento mágico, criando um mundo irreal. Em busca da mágica, a mágica se desfaz e nunca chega ao deslumbramento, à iluminação. Fica na esperança, a loucura dos sãos; ou na loucura, a esperança dos loucos.

A verdadeira mágica vai além da ilusão: a perplexidade revela uma nova harmonia, cede lugar ao deslumbramento. Ocorre uma reconciliação com o real, mas num plano maior, numa nova compreensão. Iluminação, crescimento, transcendência, êxtase, entusiasmo – mágica.

Mas mesmo a verdadeira mágica tem seu fim. O estranho torna-se familiar, o novo torna-se conhecido. Na harmonia da síntese dialética a contradição some e o conflito se desfaz. Não há mais dificuldade no domínio da nova compreensão, assimilada em nova rotina.

Até um outro momento mágico.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Vegetais, animais e o que mais?

O que temos em comum com a abóbora? Somos seres vivos. A abóbora nasce, cresce, amadure, apodrece e morre. Nós também. A sabedoria da abóbora é nada desejar, nada esperar, nada lamentar. Desapego, budismo, niilismo. Afundada sempre no presente, eterno enquanto dura. Aboboremo-nos pois: vivamos no presente, aqui e agora, afundados na rotina da sucessão dos dias enquanto tivermos fôlego. Afinal, do ponto de vista da eternidade, nada importa mesmo.

O que temos em comum com o cachorro? Somos animais, apesar da falta do rabo. Além de viver, movemo-nos e sentimos. Fugimos da dor, buscamos o prazer, e no processo, expressamos e provocamos sentimentos. Embora nos falte o rabo para abanar ou abaixar, podemos latir, rosnar e ganir. Os sentimentos nos movem e dão sentido. Ora prá lá, ora prá cá, ao sabor das paixões, o que importa é agir. Ou reagir? Movemo-nos ou somos tangidos uns pelos outros?

No que somos diferentes? Falamos. Além de expressar sentimentos, produzimos palavras, conceitos que se agregam em discursos, que se comunicam, e que também fazem a nossa cabeça. Sentimentos geram idéias, que produzem sentimentos, que fazem pensar e sentir, e assim vai. Além da genética, somos produtos e veículos da memética, a propagação evolutiva e seletiva dos "memes" de Dawkins.

Gente abóbora, gente cachorra, gente gente. A gente sempre pode se aboborar ou acachorrar.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Ignorância e Incerteza

Ignorância e incerteza são sinônimos?
Desde sempre a inquirição sobre os limites do conhecimento, a epistemologia, é um tema predileto da filosofia. Parmênides e Platão negaram o valor cognitivo dos sentidos e afirmaram a verdade maior das idéias inatas. Os sofistas, ao contrário, defendiam o relativismo moral, afirmando que o conhecimento é sempre sensitivo e subjetivo. Afora o interregno cético e a dúvida dogmática de Pirro, que negava qualquer possibilidade de conhecimento da verdade, e recomendava a suspensão do juízo como máxima sabedoria, a dúvida foi sempre evitada. A mente, sede do espírito ou da alma, cujo conteúdo é o mundo subjetivo, foi resguardada pela aura de mistério no campo do divino inescrutável à razão, mas aberto à fé pela via da graça, enquanto o mundo objetivo, incluindo o corpo humano, ficou no campo da ciência, aberto à descoberta racional de suas leis. Esta dualidade cômoda foi atacada no século XIX pelo positivismo, resultando no surgimento das ciências humanas. O determinismo avançou, escorado no materialismo, como se fossem pensamentos gêmeos.
O maior orgulho do homem ocidental (mais do que a arte e muito além da moral) é a ciência. A cadeia das causas e efeitos, a harmonia matemática da natureza e as leis que os regem parecem ser segredos abertos à razão e suas infinitas possibilidades de conhecimento. O desenvolvimento tecnológico, a dominação das forças naturais a serviço do homem e a criação de um mundo artificial são provas reais das possibilidades aparentemente incomensuráveis do conhecimento científico, que se confirma nas suas previsões e realizações reforçando o orgulho das certezas, transformando-as em convicção. Certeza de conhecimento, convicção de poder: reforço e confirmação mútuos, que se recriam e reafirmam sucessivamente. A confiança no poder da ciência confunde-se com a convicção da certeza na determinação dos eventos. Incerteza torna-se sinônimo de ignorância. Para o homem medianamente esclarecido, a ciência se transmuda em fé no progresso humano, fé que não admite o pecado da dúvida.
A escrita, a fotografia, e outras formas de registro parecem transformar o passado em presença objetiva, enquanto a arquelogia e a história o tomam como objeto de estudo científico objetivo. Ao mesmo tempo, as ciências físicas parecem dotar o futuro da mesma categoria de certeza objetiva pelo determinismo de suas leis.
Se o orgulho das ciências físicas e da tecnologia é uma das características distintivas da cultura ocidental, sua outra marca é o entendimento da ética como uma espécie de ciência moral, dentro da tradição socrática e estóica. A ética, filosofia da ação, ciência da decisão, da escolha de acordo com valores objetivos, em harmonia com a Natureza e o destino natural das coisas.
Epicuro já apontava o paradoxo: há liberdade de escolha e responsabilidade se a resposta já está dada de antemão? "Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de tudo, o sábio ri-se dele. De fato, mais vale aceitar o mito dos deuses do que se sujeitar ao destino dos físicos. Pois o mito nos deixa a esperança de nos conciliarmos com os deuses, ao passo que o destino tem um caráter de necessidade inexorável".[1] Prigogine, daonde retirei a citação remarca: "embora os físicos de que fala Epicuro sejam os filósofos estóicos, esta citação soa de maneira espantosamente moderna!"[2]
Até na matemática probabilística, o determinismo impera. Incerteza se define como ignorância, o inverso da informação. De fato, Shannon define informação como o inverso da entropia. "A entropia pode ser considerada uma medida da ignorância. Quando sabemos que um sistema está num dado macroestado, a entropia do sistema mede o grau de ignorância acerca do seu microestado, contando os bits de informação que seriam necessários para especificá-lo considerando todos os microestados possíveis como equiprováveis".[3] Mesmo depois da relatividade e da física quântica, o universo científico permaneceu determinista. "Por um lado, há a equação de Schrödinger, que descreve de maneira perfeitamente determinista como a função de onda de qualquer sistema evolui no tempo. E depois, de maneira perfeitamente independente, há um conjunto de princípios que nos dizem como usar a função de onda para calcular as probabilidade dos diferentes resultados possíveis produzidos a partir de nossas medições"[4]
O uso de uma equação probabilística reflete ignorância sobre as condições iniciais ou, ao contrário, a incerteza é um elemento constituinte da realidade, e a ignorância maior é a de quem pretende (tanto no sentido de querer quanto no de fingir) ter certeza?
O que está na base do novo paradigma científico da teoria do caos, que muitos ainda não entenderam, é exatamente isso: as leis da natureza não mais se assentam em certezas, mas sobre possibilidades, no sentido de um futuro aberto à evolução. A incerteza que está na base da probabilidade não é ignorância, mas sim a própria essência do futuro.
O interessante é que cerca de 200 AC, os fundadores da Segunda e da Nova Academia, criada por Platão séculos antes, numa reinterpretação dos muitos aspectos dos ensinamentos Socráticos, se imbuíram de argumentos céticos, negando a certeza e adotando uma visão probabilística para a condução da vida. Nada sobrou dos escritos de Arcesilau (315-241AC), mas Sextus Empiricus relata seus ensinamentos de uma filosofia das probabilidades. Carnéades (214-129AC) é um pouco menos desconhecido e fundava sua filosofia sobre três princípios: 1) nem os sentidos nem a razão podem fornecer certeza alguma; 2) a incerteza essencial do futuro; 3) a justiça é apenas uma instituição humana. Infelizmente, seus discipulos sentiram-se paralisados pela dúvida e degeneraram numa escola de filosofia "para oradores", buscando a eloqüência e o poder, como uma arte, mais do que a verdade, como ciência.
Este é o problema maior da incerteza: para enfrentá-la é preciso coragem e confiança. A dúvida é insuportável para os fracos de caráter. Estes preferem o conforto do mito, ou a ignorância sistemática como método. O método da ignorância sistemática, o não querer nem saber, no fim das contas, se aproxima muito do niilismo budista, e paradoxalmente, junta na mesma atitude o hedonista e o estóico. A ignorância sistemática é o que eu chamo de solução da abóbora: afundar-se na rotina e no presente, justificando que pensar não leva a nada e nada importa a não ser o presente, já que o futuro é incerto. A diferença entre o hedonista e o estóico é que um escolhe (ou colhe, no dizer de Horácio) o prazer e outro escolhe aquilo que considera ser o destino inevitável.

[1] Epicuro. Doctrines et Maximes. Trad. francesa de M. Solovine. Paris: Hermann, 1938. p.80.[2] Prigogine, Ilya. O Fim das Certezas. Trad. Roberto Leal Teixeira. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. p.18.[3] Gell-Mann, M. The quark and the Jaguar. London: Little Brown & co., 1994. p. 220.[4] Weinberg, S. in Scientific American, v.271, n.4, p.44, outubro 1994.

sábado, 14 de julho de 2007

Prigogine, Ilya - "O fim das incertezas"

Tenho de agradecer muito ao Jacó, que assistiu meu curso de Planejamento do Tempo esta semana e me indicou Ilya Prigogine, prêmio Nobel de química de 1977 e excelente escritor. Comprei dois livros esta semana e estou devorando o primeiro. Novas luzes sobre filosofia da ciência e os limites da epistemologia e da ética, tudo entremeado por uma profunda intriga com a questão do tempo e da evolução.


Resolvi então unir o útil ao mais útil e, ao passo que leio, fazer uma resenha, apondo meus comentários no blog. Se isso não ajudar ninguém, pelo menos agradará à Bebel, que se irrita com meus livros sublinhados e rabiscados. Sublinhar e comentar me ajuda a compreender e reter. Fazê-lo no blog, será mais demorado, mas pode ajudar outros a compreender e até a corrigir minha leitura, mesmo enquanto ela é feita.


Prigogine (1917-2003) escreveu vários livros. Este "O fim das certezas" é de 1996. Seu tema: o desenvolvimento da física de não-equilíbrio e dos sistemas dinâmicos instáveis, associado à evolução na teoria do caos, força uma revisão do conceito de tempo, formulada por Galileu e Newton, e que, segundo ele, a teoria quântica manteve.


Nas suas palavras ele